No Zimbabwe e em todo o lado: os direitos humanos esquecidos
A maior gravidade do veredicto dos árbitros do ISDS consiste no assumir claro e explícito de que as leis de investimento estão acima dos direitos humanos e funcionam à sua margem.
O ISDS, pela sua falta de transparência, isenção e escrutínio democrático, representa uma enorme ameaça ao cumprimento dos direitos humanos. Ao abrigo deste sistema arbitral, as multinacionais podem impedir, dissuadir ou reverter intervenções dos governos em áreas essenciais para o bem-estar das suas populações, em detrimento de princípios básicos de justiça social e ambiental.
Contudo, mesmo nos casos de maior infracção, a recusa em considerar e reconhecer os direitos humanos das comunidades tem sido afirmada de modo implícito, isto é, sem se assumir publicamente que, à luz do ISDS, o direito à protecção do investimento se impõe acima de qualquer outro direito, incluindo aqueles mais universais e inalienáveis. Ainda que esta realidade seja inaceitável, não se esperaria que fosse assumida de forma explícita e inequívoca.
No entanto, há um exemplo relativamente recente de um caso em que a supremacia dos direitos dos investidores sobre os direitos humanos foi abertamente assumida pelos árbitros encarregues de um processo.
Essa decisão remonta a 2012 e diz respeito a dois processos envolvendo a República do Zimbabwe: Border Timbers Limited and others v. Republic of Zimbabwe e Bernhard von Pezold and others v. Republic of Zimbabwe, movidos respectivamente pela empresa madeireira Border Timbers, que opera em Chimanimani (uma região do Zimbabwe, na fronteira com Moçambique), e pelo principal detentor da empresa, um cidadão europeu, e a respectiva família, detentores de vastos terrenos na região.
A história destes casos é complexa e inseparável das feridas deixadas pelo colonialismo, com um impacto ainda muito presente na vida de muitos zimbabuanos. Historicamente, a maior parte dos terrenos do Zimbabwe foi sempre controlada por um pequeno grupo de europeus, com especial poder económico e político. Muitas vezes, estas propriedades foram adquiridas, no final do século XIX, expulsando as populações locais, ou deixando permanecer apenas aqueles que se sujeitassem a prestar trabalhos forçados, num regime conhecido como chibaro.
Quando o país finalmente se tornou independente, quase um século mais tarde, em 1980, o governo iniciou um processo de redistribuição dos terrenos, com o objectivo de devolvê-los às comunidades que tradicionalmente os tinham ocupado. Isto foi feito, numa primeira fase, através de compra aos proprietários, co-financiada pelo Reino Unido. No entanto, quando o governo de Tony Blair foi eleito, interrompeu a participação britânica no programa. A resposta das autoridades do Zimbabwe, a partir dos anos 2000, foi a de acelerar a redistribuição de terras, mas com recurso frequente a expropriações e violência.
Em todo este contexto complexo e delicado, as comunidades da região de Chimanimani, que tinham historicamente sido expulsas pelos colonos brancos para terrenos menos férteis, procuraram recuperar muitas das suas terras de origem, entretanto compradas pela Border Timbers e pela família von Pezold, de nacionalidade suíça e alemã. Em consequência, e entre acusações, por ambas as partes, de violência e fogo-posto, foram lançados pelos proprietários dois processos contra o Zimbabwe, em 2010, através de um ISDS, ao abrigo de tratados de investimento bilaterais negociados pelo país com a Suíça e a Alemanha, durante os anos 90.
Dois anos mais tarde, durante o desenrolar do caso, os chefes das quatro comunidades locais — as tribos Ngorima, Chikukwa, Nyaruwa e Chinyai — em conjunto com o European Center for Constitutional and Human Rights, uma ONG com o objectivo de responsabilizar, por meios legais, Estados que cometam infracções aos direitos humanos, submeteram um pedido ao International Centre for the Settlement of Investment Disputes, responsável pelo processo, no sentido de que fossem contemplados, na resolução, direitos humanos universais, nomeadamente referindo o direito das comunidades às suas terras de origem e a serem consultadas. O objectivo dos peticionários era simples: o de garantir que a leis internacionais de direitos humanos fossem aplicadas.
No entanto, a resposta do ISDS não só contrariou este princípio básico, como o renegou de forma explícita. Como justificação para rejeitar o pedido das comunidades, os árbitros escreveram que o tribunal não tinha, nas suas decisões, de ter em conta normas internacionais de direitos humanos, e que um eventual desrespeito destas normas não tornaria as decisões do processo inválidas. Na sua decisão, é aliás afirmado que ‘a legislação internacional de investimento e a legislação internacional de direitos humanos [não são] interdependentes’.
O impacto desta decisão vai muito para além dos casos entre a Border Timbers e os von Pezold e o Estado do Zimbabwe — já de si complexos pelos factores históricos relacionados com a herança pesada do colonialismo, por um lado, e pela acção do regime autoritário do Zimbabwe que, no processo de
redistribuição de terrenos, cometeu também, por sua vez, infracções dos direitos humanos. A maior gravidade do veredicto dos árbitros consiste no assumir claro e explícito de que as leis de investimento estão acima dos direitos humanos e funcionam à sua margem. Não só é um exemplo extremamente perigoso, pelo significado que tem enquanto precedente legal, como nos alerta uma vez mais para o enorme ameaça que o sistema ISDS representa para a justiça social e climática nas comunidades de todo o mundo.