A terra do pó

Foi uma carta de amor que me levou à terra do pó. Depressa aprendi a amar o Albino e o Joaquim. Moram aqui, no meu peito.

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Adriano Miranda

A culpa foi de meia dúzia de camaradas. Insistiram e eu comecei. Melhor, recomecei um hábito bem antigo, mas bem escondido. Quando era jovem, escrevia poemas e entregava-os à professora Nereida. Ela resolvia lê-los na aula. Ficava nervoso e envergonhado por vezes. Mas sabia bem. Daí a começar a escrever as cartas de amor para os meus amigos foi um ápice. Quase sempre com bons resultados. Sim, nesse tempo não se namorava por SMS. Eram cartas de papel, cheirosas nos aromas e nas prosas. Eu era um ás a dar a volta à rapariga mais renitente. Coisas que foram murchando com o tempo. Agora recomecei. Não a dar a volta às raparigas, não a escrever cartas perfumadas, mas a escrever palavras revoltadas. Porque simplesmente não gosto do mundo onde habito.

As férias levam-me quase sempre ao mesmo sítio. Ao fim do dia, porque o pôr do sol é único, levo o meu portátil debaixo do braço e caminho pelos trilhos empoeirados. Chego ao Viçoso, aldeia abandonada e em ruínas, e sento-me numa laje quente. Custa um pouco. Nada que uma boa camada de creme não resolva ao deitar. Fico ali a tentar imaginar o que foram aquelas terras. E começo a escrever estas palavras revoltadas. Experiência única. Sem música para relaxar. Sem ar condicionado para não transpirar. Sem café para revigorar. E ao longe por entre as estevas consigo vê-lo.

Albino vai com o seu animal de companhia. Um burro. Nunca o jumento carregou nada. Carregou de certeza muitos segredos e confidências que Albino lhe contava nas horas de maior calor. Albino trocou a cidade por aquele pedaço de terra quase morta, estéril. Albino deixou a Alemanha, uma emigração forçada, por aquele pedaço de terra onde se sentia bem. Não tinha os marcos, nem os câmbios, mas tinha a sua liberdade e o seu burro. Teimosamente, todos os dias, sem falhar, revirava as pedras para semear e colher. Batatas, alfaces, feijão. Apanhava as amêndoas e a alfarroba. Carregava água. Todos os santos dias. Subia e descia os montes. Ouvia os pássaros, assustava as perdizes, admirava a velocidade das lebres. Só um homem teimoso e vigoroso conseguia enfrentar tal deserto. Foi vendo a terra a desgastar-se. Os homens a partirem. O posto de saúde a fechar. A escola abandonada. A olhar o céu e não ver as nuvens desejadas. Depois os senhores da Europa disseram que se devia encher as terras de pinheiros. Ajudava a “puxar” a chuva. O dinheiro veio para dois ou três patrões. Para os que sabem fazer papéis de candidaturas. Albino, assalariado à jorna como no antigamente, plantou milhares por entre pó e pedra.

Um dia, Albino não se sentiu bem. Procurou médico na cidade. Uns dias no hospital. Sem o seu burro. Sem as suas pedras nem montes. Sem o seu sol. Albino perdeu a cor da pele. Ficou magro. E regressou à sua aldeia. Deitado. Já era o fim do dia. Os homens estavam todos reunidos na esplanada do café. O Mercedes preto e adornado com prateados e a cruz de Cristo passou lentamente. Os homens num impulso começaram a caminhar atrás. Depois as mulheres. Caíram-me as lágrimas aterrado. Parecia um filme de Rossellini. Mas não era uma qualquer magia de película. Era o Albino, o resistente. Logo ali, homenageado por aqueles iguais a ele.

A noite começa a dar sinais. Eu ainda estou na mesma laje. Não dou descanso ao teclado. E numa breve pausa para arrefecer o pensamento ouço ao longe uns acordes de uma concertina. É o Joaquim. Alegre sempre. Um ser humano extraordinário. Nasceu e cresceu no tempo das trevas. Deixou a aldeia e partiu para a cidade. Fez-se operário. Casou-se. Teve filhas e neta. Era um homem feliz. Uma doçura. Regressou à aldeia. O primeiro amor é sempre o primeiro amor. Aprendeu a tocar concertina já muito tarde. E nas noites encaloradas, sentados no poial, tagarelávamos todos. Joaquim tocava para nós. Uma música de fundo. Uma música de amor. Bem pela manhã fresquinha, os sinos da igreja tocaram. Joaquim não se sentiu bem. O seu músculo cardíaco foi bloqueado. O hospital de Faro fica a 100 quilómetros e um coração doente não gosta de longas distâncias. Chorámos todos. E continuamos a chorar. Como eu agora. Lá vai o Joaquim alegre com a sua concertina. Atrás dele, numa romaria vão os coelhos, os javalis, os veados, as perdizes. Num baile animado pelas coutadas de caça. A nova modernice.

Foi uma carta de amor que me levou à terra do pó. Depressa aprendi a amar o Albino e o Joaquim. Moram aqui, no meu peito.

Porra de rectângulo é este país. Tão curto no comprimento e tão estreito na largura. Tão injusto. Aqui, no pó, há um animal em vias de extinção – o Homem. Vão envelhecendo e desaparecendo. As casas são transformadas em Airbnb, as estradas ocupadas por citadinos giros e os campos são carreiras de tiro ao javali. Os velhos e as velhas ficam sentados no poial a ver a vida passar. A sua terra amada a ser ocupada por forasteiros que não sabem o que é transformar pedras em batatas, ou cereais em pão.

É já de noite. Deixei-me ir pelo teclado do computador e as pulsações do coração. Saberei o caminho até Giões? A lua deve ajudar. Amanhã é o funeral do Nascimento e eu não posso faltar. Palavras revoltadas.

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