Da Damaia a Tóquio, de rei da dança a king do judo

Jorge Fonseca “fintou” a pobreza, venceu o cancro, teve um filho, dançou em Tóquio e saiu de lá de ouro ao pescoço, cumprido o sonho de ser king do judo. Só falta a glória olímpica.

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Fonseca celebra no Japão. LUSA/KIMIMASA MAYAMA

Jorge Fonseca tornou-se, nesta sexta-feira, o primeiro português a ser campeão do mundo de judo (-100kg). É a hora de aparecer e fazer valer o estatuto? Nem por isso. A hora da vitória deve ser, simultaneamente, a hora do “segredo”.

“O Jorge tem, agora, de se esconder um pouco, para poder ainda ter algo com que surpreender os adversários, que já estarão à espera do que ele vai fazer. Teoricamente, tendo o conforto de já estar apurado para os Jogos Olímpicos, ele tem de escolher criteriosamente o “plano de combate” até Tóquio 2020 e proteger-se um pouco”, detalha Nuno Delgado, em declarações ao PÚBLICO. Vindo de um medalhado olímpico em Sydney 2000 é, certamente, um conselho sábio.

Em 2017, Jorge Fonseca disse, ao Observador, que “o que está mesmo entalado na garganta é o campeonato do mundo”. Referia-se ao sétimo lugar no Mundial 2018, mas, agora, já não há nada entalado na garganta. Pelo contrário. Já tirou o que o “obstruía” e transformou isso em dança. A dança com que celebrou, em Tóquio, o primeiro título mundial da carreira, e a dança com que quer ser recebido em Lisboa.

“Ele dança muito”. Só muito? “Não, dança muito e bem”, confidenciou uma amiga de Jorge Fonseca. Mas a dança é, apenas, a celebração de um sonho. E de um estatuto.

“Ele tinha o objectivo de ser campeão do mundo. Ele queria ter um título para que ninguém pudesse dizer que ele não é o melhor. Ele dizia que queria ser o king”, conta Marco Pereira, também judoca, colega e amigo de Jorge Fonseca.

Um judoca que quer ser polícia

Jorge Fonseca não nasceu num “tatami de ouro”. Veio de São Tomé com 11 anos e a vida, na Damaia, não trazia facilidades.

O judo acabou por ser um escape para o jovem “gordinho”, como o próprio já se definiu, e, com o treinador Pedro Soares – o “pai” desportivo de tantos outros judocas nacionais –, cresceu. Primeiro, passando de “gordinho” para musculado e, depois, de “poço de força” para portento técnico. Sim, porque o tamanho, no judo, não é tudo.

“É certo que o principal ponto forte do Jorge é a capacidade de projectar qualquer adversário, com muita explosão e potência, mas ele é muito criativo e com golpes muito técnicos”, define Nuno Delgado.

No tatami, Jorge gosta de mandar, impondo o físico e a técnica. No país, gostaria de trabalhar pela ordem social. “Ele ainda fala do sonho de ser polícia. Diz que, depois de acabar a carreia, quer ser polícia”, conta Marco Pereira.

Entre medalhas em taças do mundo e o título europeu em sub-23, em 2013 – o primeiro português a lá chegar –, o atleta do Sporting lidou com a paternidade precoce, aos 17 anos, e com um cancro.

“Acompanhei um pouco o problema de saúde do Jorge e penso que as pessoas ficaram mais chocadas do que ele. Ele é e foi uma força da natureza. Meses depois de ter aparecido o problema, na primeira competição após ter recuperado, estava numa forma como nunca tinha estado, na Golden League 2015, na Áustria”, recorda David Reis, outro judoca e colega de treino do king. Ou da “besta negra”. Ou da “black pearl”. As alcunhas são várias, entre os amigos, que o definem como “aquela pessoa que “quebra o gelo” e faz amizades em qualquer lado” e com quem os planos “são sempre uma diversão”.

“Tem de ser candidato às medalhas”

Jorge Fonseca já começou tarde, no judo, e a própria evolução, como profissional, tem sido menos célere do que se previa. Nuno Delgado aponta, ainda assim, o atleta português como o rosto do crescimento do judo.

“Esperava-se que o Jorge tivesse explodido mais cedo, mas, finalmente, explodiu. E há condições para o judo fazer o que ainda não fez, que é conquistar um título olímpico”, aponta Delgado. E analisa o contexto nacional: “Se retirarmos os títulos da Telma Monteiro, houve, de facto, no período após o início do século, um decréscimo em termos de resultados. Esta vitória do Jorge, alimentada por uma nova geração de treinadores, faz com que os resultados estejam a aparecer, até a nível júnior.”

Daqui a cerca de um ano, no Japão, nos Jogos Olímpicos – curiosa e simbolicamente, no mesmo local onde acaba de conquistar o principal título da carreira –, Jorge Fonseca terá um estatuto bem diferente do que teve no Rio de Janeiro, em 2016.

Para os adversários, já não será um outsider. Para os portugueses, já não será uma “possível medalha”, mas uma “medalha pedida”. Nuno Delgado compreende a visão, mas considera o atleta capaz de contornar o problema.

“Esta é uma oportunidade que tem de ser aproveitada. Todas as vitórias têm o reverso da medalha, mas ele está em crescimento e tem de preparar esse “adversário”: um país que vive estas coisas do 8 ao 80”, define, afinando objectivos: “Um atleta como ele, até pela ascensão que tem tido, tem de ser candidato às medalhas. Essa deve ser a fasquia. Mas a fasquia de apoio também tem de ser reforçada”.

O estigma da pressão dos grandes palcos – que se diz tantas vezes ter atormentado atletas nacionais em anos anteriores – não será problema. Diz Marco Pereira, que bem conhece as façanhas e o valor de Fonseca: “Ele gosta da pressão. Costuma fazer grandes resultados nos grandes palcos. Com os grandes atletas é quando mais brilha”.

David Reis aponta que o novo campeão do mundo de -100kg “é um dos atletas mais explosivos do circuito mundial” e que “agora, só lhe falta a medalha olímpica”.

Jorge “fintou” a pobreza, venceu o cancro, teve um filho, dançou em Tóquio e saiu de lá de ouro ao pescoço, como king do judo. De facto, pouco mais falta. Só a glória olímpica.

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