O outro lado do tal despacho

Trata-se de saber como podemos fomentar nas escolas o respeito pelos valores da autodeterminação, diversidade e privacidade e eliminar factores de diferenciação que potenciam discriminações.

Em férias, com as ligações em serviços mínimos, acompanhei vagamente a polémica sobre o despacho que define as medidas para promover nas escolas o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e à proteção das características sexuais das crianças e jovens. A discussão foi-se afunilando cada vez mais no pormenor do direito à escolha da casa de banho pelos alunos transgénero, contaminada pela leviandade e superficialismo das redes sociais. No rescaldo, em prejuízo da moderação e equilíbrio, sobram as opiniões radicais fulminantes a favor ou contra o despacho.

Há pessoas abençoadas com a rara felicidade de verem tudo claro. A transexualidade é uma aberração da natureza que se deve reprimir e esconder, logo, dizem umas, o Estado não pode impingir às crianças “normais” uma falsa ideia de regularidade desses desvios. Ou então, no extremo oposto, dizem outras, ser menino, menina, menino em corpo de menina ou menina em corpo de menino, é tudo exactamente mesma coisa, logo o Estado deve formatar a sociedade e anular todos os factores de diferenciação do sexo, nas casas de banho, nas roupas, nos brinquedos, nos nomes, em tudo. Mas as coisas não são assim tão evidentes. No conforto da bancada, todos nos podemos dar ao luxo de proclamar teorias sobre a vida dos outros, sem o custo de as viver e sem conflitos de consciência; mas nessas vidas, que são reais, há situações dramáticas de crianças e famílias em profundo sofrimento, vítimas de bullying, com elevadíssimas taxas de suicídio e insucesso escolar.

Certamente que o Estado não pode promover ou reprimir ideologias de orientação sexual ou de identidade de género, não pode dizer que é igual ser menino ou menina ou que é errado e anormal ser menino e sentir-se menina ou ser menina e sentir-se menino. Isso pertence à individualidade e intimidade de cada um e das famílias. Mas havendo, como há, um problema, que é o das escolas não estarem preparadas para lidar com a existência de crianças e jovens em dificuldades por causa da sua sexualidade e identidade de género, gozados por colegas, rejeitados e infelizes, é obrigação do Estado tomar todas as medidas adequadas para promover os valores da inclusão, da aceitação da diferença e do respeito pelos direitos fundamentais de quem pertence a grupos minoritários e está por isso mais exposto.

Quem se der ao trabalho de ler o tão falado despacho vai ver que o que lá está não tem nada a ver com a caricatura do menino atrevido poder passar a ir espreitar as miúdas à casa de banho delas. As medidas mais discutíveis apenas se aplicam a crianças e jovens que se encontrem em processo de “transição social de identidade e expressão de género”, o que pressupõe a existência de uma situação previamente detectada e já devidamente acompanhada, em articulação com os encarregados de educação e os serviços de pedopsiquiatria. Não se trata, portanto, de colocar todos os alunos numa posição em que podem interferir sem qualquer controlo nos direitos dos outros – a ideia que a partir de agora vai ser uma rebaldaria, com cada menino ou menina a poder ir à casa de banho que escolher é um disparate. Para as crianças e jovens transgénero, o que o despacho prevê é que seja permitida a mudança do nome nos documentos da escola, o uso no nome auto-atribuído em todas as actividades da comunidade escolar, a participação nas actividades e uso de vestuário correspondentes ao género com que se auto-identificam, no caso de existirem actividades ou uniformes diferenciados por sexo e – também, sim, a medida tão falada – o uso das respectivas casas de banho e balneários.

É claro que a prazo isso levará a uma mudança cultural. Os nossos filhos e netos passarão a olhar para os colegas transgénero com mais conforto, mais naturalidade, mais tolerância; deixarão de os achincalhar e diminuir. Isso é mau? Qual é a alternativa? Abandonar essas crianças e jovens à sua sorte, como se não fossem sujeitos de direito como os outros? Segregá-los em escolas separadas? Deixar que se suicidem em grande número? Não ver o sofrimento deles e das famílias? Aqui não se trata de ser conservador ou progressista, de ser de direita ou de esquerda, trata-se de saber como podemos fomentar, a partir da infância, nas escolas, o respeito pelos valores da autodeterminação, diversidade e privacidade e eliminar factores de diferenciação que potenciam discriminações e bullying, com resultados muitas vezes trágicos.

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