O Irlandês, de Martin Scorsese, já está a criar tensões entre Netflix e os cinemas

O filme é um talismã da Nova Hollywood para o streaming, mas as negociações entre exibidores e a empresa estão presas aos prazos: quem terá o exclusivo e por quanto tempo?

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Al Pacino e De Niro, famosamente rejuvenescidos no filme que usa os mesmos actores para contar uma história ao longo de décadas NETFLIX

O Irlandês é provavelmente o lançamento mais importante do ano para a Netflix, mas o seu plano para o filme de Martin Scorsese com Robert De Niro e Al Pacino já está a encontrar obstáculos – que não serão inesperados, visto que tal como com Roma, de Alfonso Cuáron, o serviço de streaming está a enfrentar a oposição dos exibidores cinematográficos, que exigem ter o filme em exclusivo mais tempo nas suas salas. As negociações arrastam-se e o desfecho é imprevisível, avisou quarta-feira o New York Times.

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O Irlandês é provavelmente o lançamento mais importante do ano para a Netflix, mas o seu plano para o filme de Martin Scorsese com Robert De Niro e Al Pacino já está a encontrar obstáculos – que não serão inesperados, visto que tal como com Roma, de Alfonso Cuáron, o serviço de streaming está a enfrentar a oposição dos exibidores cinematográficos, que exigem ter o filme em exclusivo mais tempo nas suas salas. As negociações arrastam-se e o desfecho é imprevisível, avisou quarta-feira o New York Times.

Martin Scorsese, que sempre insistiu que O Irlandês tem de ter estar nas salas de cinema, já tem a garantia de que o seu filme sobre sindicatos, mafiosos, assassinatos e a Nova Iorque do pós-Guerra será visto num cinema: estreia mundial a 27 de Setembro no Festival de Cinema de Nova Iorque. Depois disso, o filme que o New York Times diz ter um orçamento de 143,5 milhões de euros, está envolto numa tensa negociação entre cinemas e streaming, ou entre mercados tradicionais e novos modelos de negócio para saber onde e quando chegará.

As negociações entre algumas das maiores cadeias de exibição, os AMC Theatres (11 mil ecrãs em todo o mundo e o maior exibidor a nível mundial) e a Cineplex com 1600 salas no Canadá, “arrastam-se há meses”. As conversações estacaram em Julho e só há duas semanas, escreve o New York Times, foram retomadas. De fora estão, segundo disseram as próprias cadeias, a Regal (o segundo maior exibidor nos EUA) e a Cinemark (mais de quatro mil ecrãs só nos EUA e o maior exibidor do Brasil, por exemplo), que não estão em conversações com a Netflix.

Em causa está a janela de exibição exclusiva para os cinemas, uma exigência dos exibidores que choca de frente com a filosofia Netflix da estreia day and date - uma sincronização da estreia online e em sala. Os AMC e a Cineplex querem perto de três meses de O Irlandês nas salas em exclusivo antes de o filme chegar ao streaming no Netflix, a plataforma que mudou o mercado televisivo quando passou a estrear séries disponibilizando todos os seus episódios de uma só vez. A hipótese de O Irlandês poder estar nos Óscares depende disso - embora os sete dias em sala exigidos para já pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não pareçam difíceis de conseguir, sobretudo porque não estão presos a qualquer exclusividade.

Actualmente, a Netflix conta com 151 milhões de subscrições em todo o mundo, que se podem desdobrar em vários lares e multiplicar o número de potenciais espectadores, sendo líder no seu mercado. O Irlandês não é só mais um título no seu catálogo em permanente expansão: é o filme de Scorsese que o une pela primeira vez a Al Pacino e pela nona vez a De Niro, e é o filme que a clássica Paramount (com quem Scorsese produziu O Lobo de Wall Street ou Silêncio) não quis pagar. É um talismã da Nova Hollywood dos anos 1970 para o streaming em 2019. É uma das suas maiores contratações num rol que já inclui os irmãos Coen, Noah Baumbach, David Fincher ou Steven Soderbergh.

“O desfecho dessas conversas ainda não é claro”, diz Adam Aron, presidente da AMC, em comunicado enviado ao New York Times e que detalha que as negociações envolvem “outros filmes Netflix”. O resultado dessas negociações é importante não só para o mercado cinematográfico norte-americano como um sinal para os mercados internacionais e regionais – alguns dos maiores exibidores norte-americanos (e os próprios estúdios) têm participações nas cadeias de salas de cinema em todo o mundo e a influência dos estúdios e distribuidores é grande na decisão se num país, como Portugal, por exemplo, filmes vindos dos novos players terão ou não espaço nos cinemas.

Em Portugal, o mercado de exibição e distribuição é dominado pela maioritária Nos, com a Big Picture a ser a segunda maior distribuidora e a maioria das salas nas mãos da Nos, UCI (nascida de uma fusão entre os estúdios norte-americanos Paramount e Universal), a brasileira Cineplace e a israelita New Lineo, que detém os CinemaCity. Quando da estreia de Roma, só exibidores e distribuidores independentes como a Medeia Filmes, a Midas Filmes ou a Nitrato Filmes mostraram o candidato ao Óscar de Melhor Filme nas salas portuguesas. A pressão dos grandes estúdios terá sido grande na altura, e esse ambiente é visível nas declarações escritas de Adam Aron ao jornal nova-iorquino quando diz que as regras do jogo têm de ser iguais para todos e que também tem de “respeitar as relações importantes e estreitas dos AMC com os nossos parceiros de longa data nos estúdios, incluindo a Disney, Warner Brothers, Universal, Sony, Paramount, Lionsgate”, enumera.

Nos EUA e noutros países, Roma conseguiu penetrar nas salas de cinema, mas não nas maiores cadeias nem por um longo período – o meio termo foi, no caso do mercado americano, uma estreia exclusiva 21 dias antes de chegar ao streaming. De acordo com o New York Times, as negociações para O Irlandês (que decorrem ao mais alto nível, com Ted Sarandos, presidente da Netflix para a área do conteúdo, e Scott Stuber, responsável pela divisão de cinema da plataforma de streaming, sentados à mesa com as cadeias) estarão ainda a girar em torno do mesmo tipo de prazo, cerca de três semanas.

Noutro plano, este é também mais um episódio daquelas a que se chamam já as “streaming wars”, esse posicionamento em curso dos grandes estúdios como a Disney ou a Warner, canais como a HBO e das tecnológicas como a Apple ou a Netflix no mercado do streaming. Os conglomerados de media seus proprietários e os recém-chegados de Sillicon Valley estão a redesenhar o mercado no espaço digital do streaming, mas também medem forças no mercado analógico e tradicional – as salas de cinema.