Casa Cid, taberna centenária do Cais do Sodré, corre o risco de fechar

Taberna aberta em 1913 por um galego que quis aproveitar o movimento do mercado da Ribeira está a lutar contra o seu encerramento. O prédio que hoje ocupa vai ser transformado num hotel e o proprietário diz que “não existem nesta data condições para assegurar a manutenção do restaurante”.

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Borja Cid está desde 2017 à frente do negócio fundado pelo bisavô em 1913

Põem-se as mesas na Casa Cid. Falta pouco para o meio-dia, hora de abertura aos fregueses, mas há muito que começaram os trabalhos de preparação dos comes e bebes do dia. Já chegou o peixe e a carne, ali dos vizinhos peixeiros e talhantes do Mercado da Ribeira. Para o almoço, há carapaus assados, salada de atum, febras grelhadas e novilho à Lafões. É assim todos os dias, quatro pratos à escolha do freguês numa taberna como já poucas se vêem na capital, pelo menos na baixa da cidade. E também esta, depois de 106 anos de portas abertas, já tem fim anunciado. 

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Põem-se as mesas na Casa Cid. Falta pouco para o meio-dia, hora de abertura aos fregueses, mas há muito que começaram os trabalhos de preparação dos comes e bebes do dia. Já chegou o peixe e a carne, ali dos vizinhos peixeiros e talhantes do Mercado da Ribeira. Para o almoço, há carapaus assados, salada de atum, febras grelhadas e novilho à Lafões. É assim todos os dias, quatro pratos à escolha do freguês numa taberna como já poucas se vêem na capital, pelo menos na baixa da cidade. E também esta, depois de 106 anos de portas abertas, já tem fim anunciado. 

Borja Cid, 37 anos, senta-se à mesa de avental posto e respira fundo antes de começar a falar na sua mistura de português com galego e castelhano. “Querem correr com a gente”, atira o gerente, abordando o futuro incerto da Casa Cid. O prédio foi comprado há cinco, seis anos pelo Fundo Sete Colinas que tem vários projectos ali para a zona do Cais do Sodré. Em 2015, o contrato de arrendamento transitou para o Novo Regime do Arredamento Urbano e, no ano passado, o proprietário comunicou-lhes que teriam de abandonar o espaço em Maio de 2019. Não saíram e conseguiram ficar mais um ano. Mas Borja duvida que consigam esticar mais o prazo. 

É preciso recuar até ao final do século XIX para perceber a visão de um visionário galego de Ourense, Manuel Cid Nuñez. O bisavô de Borja mudara-se para Lisboa e via nascer ao pé do rio um novo mercado. Andou por Angola e Moçambique até que regressou a Lisboa e abriu a Casa Cid em 1913, na rua da Ribeira Nova, nas traseiras do mercado que abrira em 1882. “O meu bisavô pensou assim: ‘o mercado está ali, é muita malta’. A razão de ser da casa é o mercado”, diz.

Manuel Cid Nuñez acabou por nunca trabalhar na taberna, conta o bisneto. Encarregou um galego de ficar à frente do restaurante, até que um dos filhos - e avô de Borja - acabou por tomar conta do negócio da família. 

Nos anos 40, 50, o restaurante chegou a estar aberto 24h por dia, quando o “mercado era outro mundo”. Nas décadas mais recentes tornou-se sítio de after hours para matar a fome aos foliões noctívagos, quando tinha licença para estar aberto até às 4h. 

Borja entra na história da Casa Cid em 2017, quando a mãe e a tia lhe pediram para ficar à frente do negócio. Madrileno, acabou por trocar as cozinhas de restaurantes conceituados por onde andou pelo mundo, por esta pequena tasca de Lisboa. ​

Hoje, sente que tem também ali uma missão. A de manter os sabores e pratos tradicionais portugueses acessíveis a quem os quiser experimentar. “Uma pessoa quer um chouriço grelhado não há. Cozido, feijoada, dobrada não há”. Os turistas também chegam à procura disto, diz, garantindo que 80% dos fregueses que lhe enchem a casa no Verão são estrangeiros. 

Para tentar segurar a casa, candidataram-se — desde os anos 70 que a Casa Cid tem mais um sócio — ao programa municipal “Lojas com História”, que visa “preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural, mas a atribuição desse estatuto foi rejeitado. Borja diz que já pediu uma reavaliação do processo. “Se isto não é uma loja com história, eu não sei o que é”. 

Ao PÚBLICO, a autarquia refere que a apreciação do grupo de trabalho foi desfavorável​ porque a Casa Cid se encontra “bastante descaracterizada”. Ele contrapõe e diz que foi a ASAE que assim exigiu que se mudassem os balcões de madeira para seguir a “febre do inox”, a bem da higiene e segurança alimentar — obra essa feita ainda em 1989. “O meu avô queria estar na vanguarda”, recorda. 

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Prédio deverá ser transformado num hotel, mas aguarda ainda o licenciamento da autarquia

"Mais torresmos e menos aldrabices gourmet"

O “único segredo” da casa, diz Borja Cid, é ir todos os dias à praça como se fazia há cem anos. “Tento comprar só peixe para o dia, ver a carne que está boa. É a vantagem de ter aqui o mercado.” Antes do almoço, lá chegam os vendedores do mercado para tomar a sua bica. “Tira aí um café para a Dona Teresa”, pede.

“Esta senhora é de um talho daí. A senhora que passou aqui fornece as douradas. Daqui pouco o senhor que fornece o peixe vem aqui almoçar. É isso que eu considero a história da loja. Não as coisas materiais, é mais uma história imaterial”, diz. 

Para já, está a correr um processo em tribunal para tentarem adiar o fecho da casa já anunciado para Maio de 2020. “A única hipótese seria a câmara de Lisboa dar algum tipo de protecção ou haver alguma negociação com o senhorio”. 

Em resposta ao PÚBLICO, o Fundo Sete Colinas, gerido pela Silvip, confirma a existência de um “processo judicial” em que “a arrendatária Cid & Gonzalez, Lda. pede uma indemnização pelo fim do contrato e senhorio solicita a entrega do espaço ocupado pelo restaurante uma vez que o prazo do contrato de arrendamento em causa terminou em 31 de Maio de 2019, sem que a sociedade arrendatária o tivesse restituído voluntariamente”. 

E confirma que existe já um projecto para transformar o prédio num hotel, estando “pendente um processo de licenciamento nos serviços municipais”. A Silvip nota ainda que “não existem nesta data condições para assegurar a manutenção do restaurante”, apoiando-se no parecer desfavorável de integração do restaurante no programa “Lojas com História”. 

“Eu não quero sair. É a história da minha família. Se eu conseguir ficar aqui é o sonho. Precisava de ter segurança para investir na casa, porque a casa está a cair”, diz. Abrir um restaurante novo é “impensável”. Por agora, conseguem manter-se ali até Maio de 2020. Depois, o futuro é incerto. “Tento não pensar muito nisso e pensar mais no carapau”. Ainda assim lançou um apelo, dirigido à câmara de Lisboa. No final desta quarta-feira, 433 pessoas tinham subscrito que Lisboa “precisa de mais torresmos e menos aldrabices gourmet. Porque Lisboa quer carapauzinhos fritos, feijoada, postas de bacalhau à maneira, dobrada, pescada cozida, cozidos valentes, caldeiradas e pataniscas...”