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Impingir uma bugiganga é menos apetecível do que “apostar no merchandising”; e pedinchar uma cunha é mais vexante do que “recorrer ao networking”.

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Há alguns anos, uma conhecida escritora anunciou com espavento que, por causa da crise económica, tivera de “fazer um downsizing do [s]eu lifestyle”. Não ficou claro se a acclaimed autora estava no ironing, já que os escritores são propensos à ironia; mas, God seja louvading, o que ela queria sublinhar era que, muito portuguesmente, estava tesa que nem um carapau.

Contudo, nem a situação de penúria impedira o recurso ao estrangeirismo pomposo, empregue para dar glamour (lá está, lá está) ao que não o tem. Por mais downsized que o lifestyle haja sido, a palavra evoca o brilho de lantejoulas, paisagens idílicas, ambientes trendy (eu não disse?), onde gente aperaltada debica refeições gourmet e beberica gin num copo em balão. E quem não quer aparentar a aura cosmopolita de ter visto o mundo, mesmo que nunca tenha ido para lá de Sacavém?...

Se, por atavismo, os juristas ainda se mantêm apegados ao latim, as faculdades de gestão foram lestas a adaptar-se ao novo dialecto. Na perspectiva do marketing (enfim), as vantagens são evidentes. Impingir uma bugiganga é menos apetecível do que “apostar no merchandising”; e pedinchar uma cunha é mais vexante do que “recorrer ao networking”. Ao anunciar uma joint venture, sente-se um frémito de excitação impossível de sentir com o desenvolvimento de uma parceria. Quando as coisas correm mal e não se atinge o break-even, não há que hesitar: procede-se a um benchmarking, porventura precedido de um brainstorming – isto se boa parte dos serviços não tiver sido sujeita a um outsourcing. E talvez haja mais exemplos, mas este não é o meu core business.

O recurso a termos universais explica-se, claro, pela maior facilidade de comunicação. A ninguém ocorre referir-se a um modem como um modulador ou a um router como um “dispositivo de encaminhamento”; só o meu patareco telemóvel é que traduz hotspot por “ponto de interesse”, enquanto outros o traduzem por “ponto de acesso à Internet”; e é provável que, se me deslocar a um café e inquirir se dispõe de “rede local sem fios”, o empregado não perceba que apenas queria (“ai queria, já não quer?”) saber se o tasco tem wi-fi. Seja como for, o certo é que, por força do hábito, mesmo expressões corriqueiras acabaram contaminadas de barbarismos. “Eventually” não significa “eventualmente”, “assuming that” não significa “assumindo que” e “to realize” não significa “realizar”, mas, eventualmente, haverá quem presuma a sua tradução literal e não se aperceba do lapso.

Avesso a feitios proibicionistas, encaro estas extravagâncias vocabulares sem qualquer ímpeto censório: apenas como um modismo escusado, mas inofensivo. Num mundo “global”, que tem o inglês como língua franca, lamentar o abuso de anglicismos é tão inútil como lamentar a invenção da escrita cuneiforme. Como censurar quem, face às circunstâncias coevas, tenta safar-se como pode? Decerto reflexo disso mesmo, a internacionalização da ciência foi sedimentando um jargão padronizado. Em vez de artigos, escrevem-se papers; enunciar um resumo corresponde, agora, a rabiscar um abstract; e a revisão por pares, vulgarmente, já se denomina peer review. Peer review esse que, por motivos não atinentes ao número de dioptrias do revisor, também poderá designar-se, em certos casos, blind peer review.

Bem vistas as coisas (desculpem o trocadilho), a tendência nem se restringe ao circunspecto mundo académico. Salvo os madrugadores, quem nunca tomou um brunch? Ou foi a um rooftop? A intimidação, agora, é bullying; o assédio, agora, é stalking; a corrida já foi jogging e, agora, é running. E, blind por blind, mesmo o prosaico desenrascanço, por intermédio de amigos ou de profissionais, parece menos penoso se pudermos designá-lo por blind date.

Blind date? For Deus sake: às cegas andamos todos.

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