Alaphillipe já conquistou o coração de Hinault e dos franceses

Pelotão aproveita pausa a meio do Tour para perceber até onde chegará o destemido camisola amarela, às portas dos Pirenéus e dos Alpes que o líder dominou em 2018.

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Alaphillipe, um francês improvável na liderança do Tour Reuters/CHRISTIAN HARTMANN

Com meio Tour cumprido, o pelotão tirou um dia para recuperar o fôlego que os Pirenéus e os Alpes em breve reclamarão, mas também para rever as notas e reflectir seriamente, enquanto os especialistas exploram as possibilidades de Paris consagrar um francês… improvável. Com um “modesto” 33.º lugar na Volta a França de 2018 (depois do 41.º na estreia, em 2016), a quase uma hora e meia do galês Geraint Thomas, Julian Alaphillipe apresenta-se agora como a grande sensação da “Grande Boucle”.

O ciclista da Deceunink-QuickStep pode, apesar de ser também o líder do ranking UCI, nem sequer integrar o grupo dos “rapazes” da classificação geral (GC), sendo por estes visto, por enquanto, como um epifenómeno a quem os favoritos Geraint Thomas, Egan Bernal ou Nairo Quintana prometem manter sob vigilância, mas ainda sem o rótulo de ameaça real. Aos 27 anos, Alaphillipe vive uma espécie de sonho proibido, como o próprio se encarrega de esclarecer, preferindo manter os pés na terra, até porque como não se cansa de referir, partiu para o seu terceiro Tour sem grandes ambições.

O francês ajusta-se, assim, à nova pele, ainda sem perceber qual o efeito que a mítica amarela – potenciado em ano de centenário – produz verdadeiramente. Alaphillipe diz-se, porém, diferente desde que, em Éperney, na terceira etapa, desceu pela primeira vez do autocarro da equipa e sentiu o apoio de um país orgulhoso do novo herói, sublimado pelo facto de ter-se tornado no 18.º francês a envergar a camisola amarela a 14 de Julho, dia nacional ou simplesmente da “Tomada da Bastilha”… isto, claro, depois da desilusão de ceder, por seis segundos, o comando ao italiano Ciccone, em La Planche des Belles Filles (6.ª etapa), que recuperaria dois dias depois, em Saint-Étienne.

O simbolismo é perfeito e Alaphillipe, ainda que acusando o desgaste extra que os líderes têm de aprender a suportar depois das etapas, enfrentando cerimónias de pódio, controlos anti-doping e intermináveis entrevistas, sente-se em plena forma.

O francês persegue o feito do compatriota Thomas Voeckler, que em 2004 e 2011 aguentou a liderança durante 20 dias, dez em cada edição. Mesmo não tendo sido coroado nos Campos Elísios, o alsaciano ficou para sempre nos corações dos franceses e, hoje, é um dos principais fãs de Alaphillipe, esticando até ao limite do rigor que se espera de qualquer campeão as possibilidades de Julian guardar a amarela.

Mas o grande elogio surge, de forma inesperada, pela voz do mítico “Petit blaireau”, ou pequeno texugo, como ficou conhecido Bernard Hinault, pentacampeão do Tour entre 1978 e 1985, numa era em que o francês dominou o ciclismo mundial. Pouco dado a elogios, Hinault abriu uma excepção para recuar no tempo à boleia de Alaphillipe, uma espécie de ciclista à moda antiga, arrojado e a fazer lembrar o próprio Hinault.

“Ele é excepcional porque acredita nas próprias capacidades. Corre como os ciclistas do meu tempo: as dúvidas ficam para os outros. Ele sabe onde é mais forte e quando atacar. E, simplesmente, ataca!”, declarou Hinault, embora o próprio Alaphillipe admita que essa saudável loucura muda quando se veste a amarela. Aí é igualmente sensato saber defender. Até porque o desgaste psicológico de tentar antecipar os ataques dos adversários e a disponibilidade necessária para reagir é muito diferente da liberdade a que estava habituado.

E quando todo o universo ciclista se interroga até onde poderá Alaphillipe levar esta epopeia, na tentativa de saber se claudicará no contra-relógio de Pau, numa agoirada 13.ª etapa, ou no momento em que o Tour tocar as nuvens, o francês mantém o sangue ora frio ora fervilhante, invocando o bom crono do Dauphiné ao mesmo tempo que assume a diferença entre conquistar o prémio da montanha, que arrebatou em 2018 – ano em que venceu as primeiras etapas dos Alpes e dos Pirenéus -, quando não se é uma ameaça para a classificação geral e quando se tem os grandes favoritos à perna no Tourmalet. Por isso, o melhor é mesmo pagar para ver quem festejará no Arco do Triunfo.

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