Ordem dos Enfermeiros fecha porta a inspectores, mas ministério mantém sindicância

Especialista em direito administrativo compara sindicância pedida pela ministra da Saúde à Ordem dos Enfermeiros a práticas do “Estado fascista italiano ou do Estado Novo português”. Ordem vai apresentar queixas contra inspectores que acusa de terem cometido nove tipos de crimes.

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Nuno Ferreira Santos

A Ordem dos Enfermeiros (OE) não voltará a deixar entrar nas suas instalações elementos da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), no âmbito da sindicância pedida pela ministra da Saúde em Abril, a não ser que os inspectores tragam uma ordem judicial. A bastonária Ana Rita Cavaco sustenta mesmo que a sindicância terminou, por ter sido considerada ilegal e estar ferida de inconstitucionalidades em dois pareceres jurídicos solicitados pela ordem.

Fundamentando-se no teor destes pareceres, que foram divulgados esta segunda-feira em conferência de imprensa, a ordem adiantou, em nota enviada à ministra Marta Temido, que vai apresentar queixas-crime no Ministério Público contra a inspectora-geral das Actividades em Saúde e contra os inspectores que participaram na sindicância a esta associação profissional.

A sindicância (um processo de averiguação geral sobre o funcionamento das instituições) foi requerida pela ministra para indagar “indícios de eventuais ilegalidades resultantes de intervenções públicas e declarações dos dirigentes da OE” e averiguar a gestão das contas da ordem, na sequência da polémica em torno das greves “cirúrgicas” realizadas no final do ano passado e no início deste ano pelos enfermeiros.

Acusando o ministério de estar a “perseguir” os enfermeiros, a bastonária apresentou então uma providência cautelar que foi admitida pelo Tribunal Administrativo, mas a sindicância acabou por ser retomada após uma resolução fundamentada interposta pelo ministra da Saúde.

Agora na posse dos dois pareceres jurídicos, a OE defende que serão nove os tipos de crimes alegadamente praticados por Leonor Furtado e pelos inspectores que liderou neste processo - “sequestro qualificado, furto qualificado, coacção agravada, introdução em lugar vedado ao público, abuso de poder, acesso ilegítimo a dados informáticos, dano, difamação agravada e ofensa a pessoa colectiva agravada”.

Reagindo às declarações da bastonária, o Ministério da Saúde e a inspectora-geral das Actividades em Saúde, Leonor Furtado, garantem que a sindicância continua. O gabinete da ministra da Saúde Marta Temido adiantou apenas que o ministério foi notificado da junção de dois pareceres jurídicos, pela Ordem dos Enfermeiros, aos autos da providência cautelar. “A referida providência cautelar ainda não teve decisão, pelo que, até lá, a sindicância prossegue”, frisa o gabinete de Marta Temido.

“O trabalho inspectivo está a ser realizado dentro da legalidade, serenamente, encontra-se na fase final e em breve será concluído”, disse ao PÚBLICO Leonor Furtado, frisando, a propósito, que a IGAS já não vai necessitar de voltar à Ordem dos Enfermeiros no âmbito desta sindicância.

Direito de resistência

Na conferência de imprensa, a bastonária Ana Rita assegurou que a ordem não vai fornecer mais documentos, sem um pedido do tribunal. "A sindicância para nós, sem uma decisão do tribunal, terminou, não iremos responder a mais nenhum e-mail, nem fornecer mais documentos, não iremos colaborar”, especificou Ana Rita Cavaco.

A bastonária explicou que as queixas-crime estão relacionadas com a actuação dos inspectores no dia 13 de Maio, quando estes entraram nas instalações da OE em Lisboa, com a ajuda da PSP. “Foram arrombados armários pelos inspectores da IGAS e foram levados pertences e documentos”, pelo que, “perante esta atitude, cabe ao tribunal decidir o que vai acontecer”, acentuou.

Para sustentar a posição de que esta averiguação é ilegal e inconstitucional, a ordem pediu pareceres jurídicos a dois professores de direito, que foram taxativos. O professor catedrático de direito administrativo e constitucionalista Paulo Otero defende que a sindicância enferma de graves ilegalidades. Considera mesmo que, neste processo, se age sobre a OE “como se a ordem jurídica vigente fosse semelhante ao modelo corporativo do Estado fascista italiano ou do Estado novo português”. E defende que, face à suposta ilegalidade do processo, assiste à Ordem um direito de resistência. 

“A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde trata a Ordem dos Enfermeiros como se se tratasse de um órgão do Estado, aplica-lhe os diplomas reguladores da actividade inspectiva da administração central e entra pelas instalações da Ordem dos Enfermeiros como se tratasse de um departamento subordinado hierarquicamente ao Ministério da Saúde”, lê-se no parecer.

Sobre a forma como os inspectores actuaram em 13 de Maio na sede da OE, Paulo Otero defende que este comportamento “consubstancia um atentado gravíssimo à autonomia da instituição e ao próprio Estado de direito democrático, verificando-se que nem durante o Estado Novo alguma vez o Governo adoptou semelhante conduta face às ordens profissionais”. Acrescenta que a IGAS "não goza de habilitação legal válida para realizar sindicâncias junto das associações públicas profissionais sujeitas a tutela do Ministério da Saúde”. Para Paulo Otero, a falta de um mandado de busca “gera uma situação de via de facto, passível de gerar direito de resistência e cujas provas recolhidas são nulas”.

Considerando também que esta sindicância é ilegal, o professor catedrático e especialista em questões do regime de protecção de dados Alexandre Sousa Pinheiro observa que, mesmo que esta fosse legal, a forma como foi pedida e executada viola o Regulamento Geral de Protecção de Dados.

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