Ascensão e queda de um laboratório de fonética em Coimbra que foi referência mundial

O Laboratório de Fonética Experimental da Universidade de Coimbra desapareceu nos anos 1970 e caiu no esquecimento, de onde o investigador Quintino Lopes o quer tirar.

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Armando de Lacerda no Gabinete Português de Leitura em Salvador da Bahia a 4 de Fevereiro de 1957

No piso dois da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC), funcionou um laboratório de referência mundial, que atraía investigadores de vários pontos do globo para estudar cientificamente a fala humana. Armando de Lacerda criou instrumentos de referência e fundou o Laboratório de Fonética Experimental da UC na década de 1930, atraindo académicos de Harvard, Cambridge ou Bona a um país tradicionalmente periférico. O espaço de investigação entrou mais tarde numa trajectória de declínio, até ser desmantelado nos anos 1970 e ter caído no esquecimento.

No entanto, o investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Évora, Quintino Lopes, encontrou o trabalho de Armando de Lacerda durante a tese de doutoramento que defendeu em 2017. A investigação debruçou-se sobre papel da Junta de Educação Nacional (JEN), estrutura criada em 1929, que procurou “europeizar a ciência e pedagogia em Portugal” nos primeiros anos da ditadura.

Percebeu então que, “entre os vários laboratórios e cientistas de projecção internacional, tínhamos um que se destacava dos outros todos”, com “esta particularidade de atrair investigadores do estrangeiro para Portugal”, explicou o historiador de ciência Quintino Lopes numa conferência que decorreu no Museu da Ciência da UC.

O policromógrafo de Lacerda

O percurso académico de Armando de Lacerda começa na Universidade do Porto, com a licenciatura em filologia germânica. É daí que parte para Hamburgo para se especializar em fonética experimental, com o apoio da JEN, passando em 1931 para Bona. Foi ali que, não satisfeito com os métodos então seguidos, desenvolveu os primeiros instrumentos, como o policromógrafo de Lacerda. Este aparelho utilizava um novo método científico de registo sonoro para análise dos sons da linguagem. O instrumento em metal, do qual o Museu da Ciência da UC guarda um exemplar, foi apresentado no I Congresso Internacional de Ciências Fonéticas, em Amesterdão, em 1932, e para o fabricar, o académico contou com um apoio extraordinário de 11 mil escudos da JEN.

Foi também com o apoio da JEN que montou em Coimbra o Laboratório de Fonética Experimental da UC, em 1936. Logo em 1939, Francis Millet Rogers, que então leccionava na Universidade de Harvard, foi passar uma temporada a Coimbra, para aprender a trabalhar com o académico português. Com a construção de uma nova Faculdade de Letras, em 1951, o laboratório veio a ocupar uma ala do edifício, no piso dois. “Dá toda a impressão de que tenha sido construída de raiz para acomodar o laboratório”, explica Quintino Lopes. O conjunto é constituído por uma sequência de salas, com corredor e um letreiro com indicação do laboratório, hoje espaços bibliotecários.

Entre outros aspectos, Lacerda estudava a contiguidade dos sons, ou seja, a forma como “o som que estamos a dizer está já a preparar o próximo, e que esse está a influenciar o que acabámos de dizer”, explica Quintino Lopes.

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Cromógrafo de Lacerda instalado no Laboratório de Fonética Experimental da Faculdade de Letras de Coimbra Museu da Ciência da Universidade de Coimbra

No âmbito do seu trabalho, Armando Lacerda captou sons de falares regionais e de leituras de textos. Muitas foram enviadas para outras universidades, mas Quintino Lopes acredita que algumas ainda estarão no acervo do Museu da Ciência, não musealizadas. Sendo um cientista meticuloso, Armando Lacerda registava tudo ao pormenor: fotografava os entrevistados e documentava os seus dados, informação que ainda pode ser encontrada na biblioteca da Faculdade de Letras da UC, refere Quintino Lopes. Em vários arquivos, é possível observar a correspondência com alguns dos maiores especialistas mundiais da fonética, da Alemanha nazi à Hungria comunista.

Armando Lacerda passou pelas universidades norte-americanas de Maddison-Wisconsin, pelo Queens College, em Nova Iorque, e orientou a criação dos primeiros laboratórios de fonética experimental da Baía e do Rio de Janeiro, na década de 1950. Apesar desse périplo, Coimbra continuou a ser “o epicentro da sua acção científica”, conclui Quintino Lopes.

Como é que um laboratório na Coimbra do Estado Novo se torna uma referência mundial? Os métodos de investigação que Armando Lacerda desenvolveu no campo da fonética, com o respaldo da JEN, permitiram atrair numerosos investigadores estrangeiros. O que significa também que, quando o apoio decresce, o laboratório começa a definhar.

“Nos anos 1960 começa a deixar de ter grandes financiamentos”, refere Quintino Lopes. Nesta fase da sua investigação de pós-doutoramento, o historiador de ciência ainda não estabelece com certeza as causas da queda do laboratório, mas aponta que o principal factor terá sido a falta de financiamento. Com início em 1961, a guerra colonial, que se arrastou até ao estertor do regime, absorveu uma fatia significativa do Orçamento do Estado, impedindo a sua aplicação noutras áreas.

Armando de Lacerda morreu em 1984, com 82 anos, 12 anos depois de se ter jubilado como director do Laboratório de Fonética Experimental da UC. Com a retirada do professor, o laboratório foi perdendo espaço na Faculdade de Letras, sendo diminuído o número de salas, até ao ponto em que alguns dos instrumentos foram transferidos para o Laboratório de Fonética e Fonologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, hoje o único do género no país.

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