Jean-Claude Brisseau, o último grande cineasta do misticismo

Cineasta francês morreu este sábado aos 74 anos, em Paris. De Bruit ou de Fureur e Noce Blanche estão entre os maiores filmes desta figura controversa. Alguém que definia o seu cinema como “uma exploração daqueles pontos de fronteira entre o que é permitido e o que não é permitido, entre a clausura e a liberdade”.

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Jean-Claude Brisseau com o prémio que recebeu no Festival de Locarno em 2012 Reuters

Jean-Claude Brisseau deixou-nos, então, com uma gargalhada, aquela gargalhada da personagem feminina que ocupava o último plano do último filme do realizador, Que o Diabo nos Carregue, estreado em Portugal no ano passado, uma gargalhada que Brisseau, em entrevista ao Ípsilon, contava ter sido inspirada nas gargalhadas mais violentas da história do cinema, as dos finais do Wild Bunch, de Peckinpah, e do Tesouro de Sierra Madre, de John Huston.

Sim, Brisseau era um cinéfilo enciclopédico (algo que os seus últimos filmes mostram bem), mas neste plano e neste fecho de obra há mais do que só cinefilia: é a gargalhada, entre o desespero e uma espécie de condescendência frustrada, de uma personagem que vê mais, sente mais e sabe mais do que as personagens em volta.

Brisseau sempre filmou personagens assim, atraídas pelo misticismo, pela religião, por uma dimensão sobrenatural a perfurar a realidade quotidiana, por vezes com o prazer e o êxtase sexuais a funcionarem, para as personagens, como elemento de ligação, ou como porta de entrada para um domínio da ordem do delírio mas, e como se diz textualmente em mais do que um dos seus filme, “mais real do que a realidade”. Era este domínio que certas personagens de Brisseau viam e conheciam, era este domínio que a sua obra queria fazer o espectador experimentar. Ele via mais: cada filme dele deixa-nos na iminência da revelação de um qualquer segredo fundamental.

Um professor de liceu

Nascido em 1944, o seu percurso foi singular. Se era um cinéfilo e um literato, a sua actividade profissional até perto dos 40 anos foi a de professor de liceu, experiência que de resto se reflectiu nalguns dos seus maiores filmes (como De Bruit ou de Fureur, de 1989, ou Noce Blanche, de 1990), quer pela descrição do ambiente escolar, quer pela pintura do ambiente social em volta (normalmente, os banlieue).

Nos meados da década de 70 começou a filmar, quase sozinho e em moldes totalmente amadorísticos. Um dos filmes que fez nessas condições foi exibido num festival de cinema amador e visto por um espectador que ali estava mais ou menos casualmente, chamado Eric Rohmer. Entusiasmado, Rohmer encorajou-o, abriu-lhe algumas portas do cinema “oficial”, e foi assim que, nos anos 80, Brisseau se tornou finalmente um realizador profissional.

Bem a tempo de construir uma obra singularíssima e altamente perturbante, sempre ou quase sempre a interrogar a sobreposição entre a realidade “real” (nos seus mais diferentes aspectos sociais e políticos) e uma dimensão a que, à falta de melhor termo, chamaremos “mística” (e onde tanto cabem a mitologia do antigo Egipto como o catolicismo ou o budismo). Um filme como Céline (1992), por exemplo, deve ser a única tentativa séria de filmar uma santa “moderna” (ou pelo menos, desde o Europa 51 de Rossellini).

Os elementos eróticos dos seus filmes, que se intensificaram nos anos 2000, trouxeram-lhes uma carga polémica superficial ("superficial” porque é falhar completamente o ponto se se ficar aí, no “erotismo"), adensada pelo processo movido por três actrizes que o acusaram de assédio durante o casting de Coisas Secretas (2002). Brisseau foi condenado a um ano de prisão e ao pagamento de uma indemnização, processo fechado (e como escreveu Louis Skorecki, suportado por Brisseau com o estoicismo do “wrong man” de Hitchcock) mas que não impediu grandes pressões “populares” para o cancelamento de uma retrospectiva da sua obra na Cinemateca Francesa, há dois ou três anos (e com sucesso: a retrospectiva foi cancelada).

Brisseau abordou o tema em Os Anjos Exterminadores (2006), espécie de variação semimágica sobre o seu próprio processo, mas passou a ter maiores dificuldades para filmar. Os seus últimos filmes (o sublime A Rapariga de Parte Nenhuma, de 2012, um verdadeiro testamento artístico, ou Que o Diabo nos Carregue, de 2017) são quase um regresso ao amadorismo, feitos em casa do próprio autor, quase sem dinheiro mas com uma imaginação transbordante.

Nessa entrevista que citámos ao princípio, Brisseau dizia: “Os meus filmes são como aquela ideia da Marguerite Yourcenar, uma volta pelos limites da prisão, uma exploração daqueles pontos de fronteira entre o que é permitido e o que não é permitido, entre a clausura e a liberdade.” Se ele fosse uma personagem dos seus filmes, estaria agora em condições de ver o que há para além dos limites da prisão. Podemos apenas imaginar os filmes que ele faria desse ponto em que sê vê mais do que nós todos conseguimos ver.

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