A circulação de poder nas sociedades democráticas

Criar condições para uma maior participação não é, exclusivamente, um exercício normativo a partir do Estado.

Quando se aproximam duas eleições importantes – para o Parlamento Europeu em Maio e para a Assembleia da República em Outubro –, porquê refletir sobre os modelos de distribuição de poder na sociedade portuguesa? Para dizer que as dinâmicas partidárias são importantes mas não esgotam o quadro contemporâneo da participação política, que precisa de ser revisitado. Para dizer que vale a pena os partidos políticos tomarem em conta, cada vez mais, processos inclusivos de participação.

Há critérios para definir um processo democrático. Entre eles, encontram-se a participação efetiva dos cidadãos na vida da comunidade, o direito igual de participação em atos eleitorais, a obtenção de informação esclarecida sobre as decisões públicas, a capacidade de controlar os temas políticos que defendemos.

Para a plena realização democrática, o estatuto normativo de igualdade de direitos e deveres cidadãos precisa de ser garantido por um conjunto de condições que lhes permita concorrer, com liberdade e confiança, para a construção de um espaço de participação política, ao mesmo tempo comum e plural.

A liberdade e a confiança em comunidade só se concretizam com um contrato social baseado, mais que na ideia genérica de igualdade, liberdade e fraternidade, na ideia operativa de igualdade de oportunidades para todos, com a comunidade a promover a inclusão daqueles que se encontram em situação de desfavorecimento – trata-se de não deixar ninguém para trás.

Sem este quadro de valores, teremos sempre dificuldade de cumprir, de forma justa, critérios de participação política.

A construção histórica a que corresponde o Estado democrático tem sofrido ataques tremendos, de que o papel atual das fake news, a dificuldade de renovação das elites políticas e o aumento de movimentos extremistas são sinais evidentes. Perante estes desafios, criar condições para uma maior circulação do poder, para uma maior participação, não é, exclusivamente, um exercício normativo a partir do Estado.

Estado e comunidade encontram-se em muitos parâmetros, mas Estado e comunidade são conceitos que não se esgotam um no outro. Identificar o conceito de comunidade com Estado, juridificando, homonegeneizando todas as relações comunitárias, pode ser um ato hostil face à pluralidade das dinâmicas de interação.

Reconhecer que os exercícios de circulação de poder em dada comunidade integram, mas não se esgotam, no quadro estatal, é aceitar a complexidade inerente às comunidades contemporâneas.

Hoje, dentro do sistema global geopolítico em Estados, ganhamos em pensar num quadro de poder que se constrói sobre si próprio e se desenvolve, não de forma unidirecional, mas em profundidade.

Especificamente, a estabilidade da ordem interna estatal democrática implica entendimentos para lá das teorias lineares – seja por via do materialismo histórico ou das expectativas no conceito liberal de progresso.

Podemos pensar o território político como um ecossistema integrador da ordem humana e da ordem natural, não através da renúncia a um contrato social, mas pela compreensão da necessidade de o (re)construir a partir de novas premissas.

Os desafios contemporâneos, nas sociedades democráticas, são muito exigentes, e colocam questões difíceis:

  • Politicamente, face aos extremismos, que estimulam as posições antagónicas e ferem a possibilidade de interações colaborativas;
  • Economicamente, perante a existência de desigualdades marcantes;
  • Culturalmente, em função das condições de formação e exercício de representações e críticas da pluralidade valorativa e criativa;
  • Ambientalmente – por causa da insustentabilidade dos modelos industriais e das alterações climáticas;

A exclusividade de uma ação estatal, a crença na ideia de que o progresso ou a evolução histórica hão-de – mais à frente – resolver os problemas de hoje, já não chegam.

Melhor que as gerações mais velhas, as mais novas perceberam-no, e querem, exigem, garantir – agora – as condições do futuro. Manifestações recentes de jovens, por todo o mundo, num protesto global relativo à mão humana nas alterações climáticas e à ação necessária a este respeito, são um sinal evidente desta consciência. 

Conceitos como economia circular, entre outros, têm apresentado modelos para atingir um desenvolvimento sustentável. Se têm sido relevantes no seu contributo para estabelecer abordagens novas aos problemas de desenvolvimento, também é certo que oferecem algumas limitações: estes conceitos não integram parâmetros de participação política, justiça social, equidade, distribuição de poder na comunidade.

É preciso, por isso, complexificar o conceito de economia circular.

Esta complexificação tende para uma ideia de política circular – um sistema complexo composto por variáveis políticas, económicas, sociais, culturais e ambientais. Variáveis organizadas em torno da ideia de comunidade cidadã em dado território. A comunidade dos cidadãos como elemento polarizador e a partir da qual se estabelecem, numa visão de fluxos circulares de poder, os parâmetros que permitem aferir e promover a sustentabilidade, inclusão e coesão de dada comunidade, num contínuo aprofundamento das interações, numa ótica colaborativa, com o consequente reforço dos laços de confiança e cooperação.

Hoje, a nível nacional, regional, local, sendo que as formas representativas de democracia são essenciais, não tem sentido ignorar os novos modelos de participação política. Orçamentos participativos, petições, transparência administrativa, assembleias comunitárias, associações cívicas, podem fazer parte de um círculo coerente e integrador, onde a complexidade que vivemos possa ser valorizada, em vez de gerar uma crescente fragmentação e disputa de canais de legitimidade e de poder.

Num sistema de política circular, o Estado, as empresas, a economia social, a sociedade civil (universidades, associações, grupos informais, etc.) encontram-se em pontos físicos e digitais, para colocar as suas atividades e expectativas, críticas e propostas em comum, pondo os diferentes níveis de poder a circular informação, formação, projetos, ação, avaliação e controlo de resultados – permanentemente, numa dinâmica orientada para o bem comum.

Este modelo não propõem nem resulta na diminuição dos mecanismos eletivos de representação. Antes pretende colocar diversos dispositivos formais, não formais e informais de poder a agir, integradamente, para uma maior e melhor distribuição do mesmo.

O poder, mesmo nas sociedades democráticas, está muito concentrado, por vezes de forma pouco transparente. Esta concentração significa que poucos detêm muito e muitos detêm pouco ou nenhum. Devemos, pois, repensar as dinâmicas da sua circulação, seja no território físico, seja no digital, ou, melhor ainda, nessa entidade fusionada que une os dois territórios num tecnopoder.

Sem menorizar a importância do sistema partidário em democracia, precisamos é mesmo de garantir que o nosso Presente e o nosso Futuro não se resumem, em termos de distribuição de poder, a disputas ou oligarquias partidárias.

Complexificar, de forma participada e circular, as dinâmicas de poder, é um caminho possível.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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