“Por vezes, demoramos mais tempo a ganhar intimidade do que a fotografar”

Leonel de Castro venceu os dois mais importantes prémios do Estação Imagem 2019 ao aceder a espaços pessoais.

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Fotografia do projecto Almas LEONEL DE CASTRO

Uma das fotografias a preto e branco da série de Leonel de Castro mostra Job Soares, ex-bancário, hoje com 70 anos, debruçado sobre a cama da mulher, que sofria de Alzheimer, beijando-lhe a testa. Ela morreria uma semana depois. “A maior prova de amor que assisti em toda a minha vida”, afirma Leonel de Castro, para se referir às pessoas que começou a acompanhar em 2014, para o projecto Almas

A sequência, que acabou por ganhar o Prémio Estação Imagem Coimbra 2019, espelha as vidas de cuidadores informais. Estima-se que sejam cerca de 800 mil em Portugal. São pessoas que abdicam do seu trabalho para cuidar de idosos ou pessoas incapacitadas e ainda não têm um estatuto que lhes reconheça o trabalho, apesar de o assunto ter vindo a ganhar proeminência nos últimos anos. O objectivo, explica Leonel, era retratar “o seu quotidiano e não apenas chegar e fazer uma imagem. Por vezes, demoramos mais tempo a ganhar intimidade do que a fotografar”, refere. 

Tratando-se de um projecto sustentado no acesso a dimensões muito pessoais, há também momentos em que o fotógrafo tem de decidir quando baixar a objectiva. “Num trabalho destes, depois de ganharmos a confiança das pessoas, elas estão completamente expostas, afirma. “Temos de ter algum cuidado nos momentos mais íntimos”, descreve Leonel, para explicar que o objectivo era “dignificar a pessoa a não tirar proveito da estética do horror”.

O ponto de partida para Almas foi uma conversa com o escritor Mário Cláudio, que tinha sido professor de jornalismo de Leonel de Castro. “Ele sabia que eu gosto de trabalhar este tipo de temas e convidou-me para fazer um trabalho com as pessoas que sofrem com o sofrimento dos outros. Pessoas que deixam as suas vidas profissionais, para cuidar daqueles que mais amam”, recorda o fotojornalista da Global Imagens, que começou a trabalhar para o Jornal de Notícias em 1997. Parte da inspiração veio também do conjunto de ensaios Olhando O Sofrimento dos Outros (Quetzal, 2015), da norte-americana Susan Sontag, referiu. Já depois de descer do palco, Leonel de Castro ofereceu o galardão a Job Soares, que esteve em Coimbra para assistir à cerimónia. 

O prémio de Fotografia do Ano foi também para o fotojornalista. Mulher Berber mostra uma só marroquina, que poderia ser tantas outras. A imagem foi captada numa de duas viagens a Marrocos – uma para o JN, outra a título pessoal – num trabalho que queria ilustrar as vidas das mulheres muçulmanas em Marrocos. Muitas não quiserem ser fotografadas por receio dos maridos, algo que Leonel de Castro sublinha: “A mulher muçulmana tem mais deveres do que direitos e está sempre submetida ao marido. Desde a indumentária à autorização para sair de casa”. 

Uma desigualdade de género que não está confinada a um só território. “Todos os dias somos confrontados com notícias de mulheres violentadas, assassinadas pelos maridos e está na altura de dizermos basta a este tipo de crimes, de defendermos a igualdade entre homem e mulher”, aponta. 

Quanto ao estado do fotojornalismo em Portugal, Leonel de Castro considera que “nunca tivemos tantos bons fotógrafos”. “Os fotógrafos portugueses, apesar de viverem em grande dificuldade, estão a virar-se e a levar o seu caminho dentro da profissão e a lutarem por aquilo em que realmente acreditam”, considera.

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