Problemas estéticos para a Páscoa

A encenação de Romeo Castellucci deixou a música incólume, mas propôs uma reflexão artística a partir da Paixão Segundo São Mateus que tem o mérito de exigir espírito crítico por parte dos espectadores. Michel Corboz, por seu lado, encontrou novas dinâmicas para o velho Bach.

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A encenação de Romeo Castellucci vestiu palco, intérpretes e maestro de branco Nuno Ferreira Santos
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O maestro Michel Corboz conseguiu descobrir e dar a descobrir novidades numa música com quase 300 anos Nuno Ferreira Santos
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A Paixão de Romeo Castellucci é um singular desfile de objectos Nuno Ferreira Santos
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A Paixão de Romeo Castellucci é um singular desfile de objectos Nuno Ferreira Santos
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A soprano Ana Quintans entregou-se com ardor à interpretação Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

Quando um encenador “polémico”, “escandaloso”, na crista da onda, propõe uma encenação da Paixão Segundo São Mateus (que habitualmente não é coisa que se encene) e esse encenador é Romeo Castellucci, quando o próprio espectáculo toma o seu nome (A Paixão/ Romeo Castellucci) e até Bach desaparece do título do espectáculo e fica em segundo plano, é natural que o crítico “de música” fique alerta e seja obrigado a sair do seu cantinho. Com este Castellucci (e suas cúmplices de encenação e dramaturgia, Silvia Costa e Piersandra Di Matteo) é fácil claudicar, porque a inteligência, a acutilância e até o sentido de humor da encenação podem deixar qualquer um boquiaberto. Mas já lá vamos.

Tudo se iniciou em brancura total: um palco todo branco, os músicos da Orquestra Gulbenkian, os membros do coro e os solistas vestidos igualmente de branco. O maestro Michel Corboz, de branco também, chegou acompanhado (para além da sua bengala), e já fazia parte da encenação: passa as mãos por água e começa a dirigir a obra-prima de Bach. Estaria a lavar as mãos como Pilatos? Quase podíamos imaginá-lo dizendo: “eu não tenho nada a ver com esta encenação, com este sangue!”

E começou o seu trabalho, dirigindo primorosamente a Orquestra e o Coro Gulbenkian. Houve alguns percalços, aqui e acolá, no coro e na orquestra. Mas no essencial a interpretação foi de alta qualidade, com momentos de grande intensidade, do princípio ("Tende piedade de nós, ó Jesus!"), até ao último coral ("Quando chegar a minha hora....”).

Houve também um conjunto de solistas excepcional: nas vozes femininas, Ana Quintans entregou o coração à música de Bach (e aqui “paixão” foi mesmo ardor) e a espectacular mezzo norueguesa Marianne Beate Kielland cantou soberbamente o doce perfume das lágrimas e interagiu magnificamente com o coro perto do final. Mas é preciso sublinhar as prestações magníficas de Marco Alves dos Santos, de André Baleiro (um Jesus excelente), do extraordinário evangelista Benedikt Kristjánsson e de um baixo fora de série, Edwin Crossley-Mercer: que bela última ária, em que o coração se purifica só de ouvir a incrível música de Bach. E a orquestra no sítio certo, nos tempos escolhidos (em Bach é preciso escolher!) pelo maestro octogenário Michel Corboz, que consegue descobrir – e dar-nos a descobrir – qualquer coisa de novo na música desta Paixão com quase 300 anos.

Entretanto, toda esta música não estava separada da encenação de Castellucci. Provocadora, sim, porque exige debate. Polémica, talvez, se provoca guerras e abre feridas. Escandalosa, porque coloca obstáculos difíceis aos espectadores, que só podem recuar absolutamente (ou apupar, como se ouviu também no final, embora fossem apupos abafados por uma enorme chuva de aplausos) ou saltar por cima deles, se conseguirem não tropeçar.

A encenação propõe um singular desfile de objectos trazidos por performers que são ao mesmo tempo contra-regras – apresentação e nunca “representação” –, desde um busto inicial até à máscara final do evangelista, passando por pequenos e grandes objectos, como um autocarro (!), um frigorífico (para a Última Ceia, claro...), um pinheiro cortado em palco, um sarcófago para um performer, uma pedra de mármore... E tantos outros elementos, jogando com literalidades (o sangue é mesmo sangue) ou, no extremo oposto, com simbolismos (cruzes, cordeiros, etc). Teatro plástico, teatro ambíguo, teatro sem drama. Mas porquê convocar figurantes e actores (vestidos como “pessoas comuns”) para reproduzirem a posição de Cristo na cruz? E um homem com próteses como se fosse um objecto para mostrar? Aí a encenação de Castellucci perde força, compraz-se em violências bem comportadas e afinal não tão iconoclastas como à primeira vista poderiam parecer, entra no clima da arte “ética” e numa estética que se contenta em desamparar o espírito, fazer o luto, propondo que soframos em silêncio e aceitemos Bach em consenso perante sublimes imagens.

Problemas estéticos muito apropriados para a Páscoa, é certo, e que vale a pena debater. “Bem-aventurados são os vossos olhos porque vêem e os vossos ouvidos porque ouvem.” Será isso bastante, meu deus?

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