"O artista é em si mesmo um movimento político"

Romeo CastellucciPerplexidade e inconformismo. No Festival de Avignon, as reacções à nova peça do encenador italiano variam entre a estupefacção e a recusa. E também houve quem lhe pedisse para explicar o que estava a fazer

O teatro do italiano Romeo Castellucci (n. Cesena, 1960) não se explica. Vê-se. E, muitas vezes, coloca-se como força de oposição a um discurso de composição e estruturação que tende a afastar o próprio espectador. Contudo, o encenador, fundador da Socìetas Raffaello Sanzio, quer acreditar num diálogo profundo entre as imagens que produz em palco e a reflexão que sobre elas pode ser produzida. A sua mais recente criação, Four Seasons Restaurant, surge na sequência dos protestos por extremistas de direita e fundamentalistas católicos que, perante o uso de imagens de Cristo na anterior peça, Sul Concetto di Volto nel Figlio di Dio, o acusaram de heresia e profanação da imagem sagrada.

O seu teatro, profusamente visual, constrói-se a partir da negação do significado directo da própria imagem, diz. E, agora, na maior montra de exibição do teatro, partindo dos exemplos do "suicídio social", cometido por Empédocles, o trágico herói do texto de Hölderlin, e inspirado pelo pintor Mark Rothko, cujas obras para um restaurante nos anos 1960 - os Seagram Murals, para o Four Seasons de Nova Iorque (hoje dispersos por museus) - dão título à peça, Castellucci sugere o desaparecimento do seu próprio trabalho. A peça foi recebida com perplexidade por um público que se habitou a ver no encenador, presença regular no festival e artista associado em 2008, mais do que um esteta.

Ao falar do desaparecimento do gesto do artista, é difícil não ler esta nova peça como resposta às pressões sobre o espectáculo anterior. O que mudou no seu trabalho?

É uma leitura possível, sim. Cada reflexão pertence a um gesto artístico e cada espectáculo é uma nova interrogação. Mas quais são as tensões que aqui se opõem? Porquê o gesto e não a palavra? Há sempre uma força que nos leva para o exterior e outra que nos empurra para o interior, até nos fazer desaparecer. Neste novo ciclo de espectáculos, à superfície das coisas, há uma espécie de revelação desse combate entre imagem e palavra, revelado pela poesia das palavras de Hölderlin. Podemos imaginar Empédocles como sendo a metáfora do artista, mas também como uma personagem que é, ela mesma, uma metáfora da imagem.

Uma metáfora para a imagem e o que ela representa?

Para a imagem, ainda antes de ser símbolo. A imagem como ela é. A imagem é sempre a coisa. Somente os homens têm uma relação tão complexa com a imagem. Ela não existe para os animais que, perante um espelho, quando percebem que se trata de um reflexo, a ignoram porque deixou de ser uma ameaça para o seu território.

Para nós, então, a imagem é uma questão de delimitação de território?

A nós a imagem interessa-nos porque se separou da acção. Foi essa separação que permitiu o nascimento da linguagem e a relação dos homens com as imagens. O fundamento de cada imagem está no seu negativo.

A mim interessa-me uma dimensão política mais radical que existe na concepção da imagem. Empédocles é uma personagem política, a sua escolha, de abandonar os homens e se retirar, de interromper o contrato social e se tornar heréctico, é política. A heresia é uma forma de política radical. E o artista, com o seu comprometimento, é em si mesmo um movimento político.

Como é que promove o desaparecimento do artista e do seu trabalho no interior de montras de grande visibilidade como os festivais e as instituições?

O paradoxo é esse. É preciso enunciar esse desaparecimento. Rothko, antes de retirar a sua obra [do Four Seasons], completou-a. Empédocles, para desaparecer, fala o tempo todo. Porque não ficou em silêncio? Porque o silêncio é a "condenação" da arte. É preciso que o artista se exprima. O vazio não existe. A ausência não é o vazio, é outra coisa. É preciso fazer afirmações, enunciar e promover a afirmação da negação. O grau zero do zen não existe, não pertence à cultura ocidental. E o teatro, baseado nessa cultura, é fundado na ideia de dois: eu e outro. O drama surge como terceiro eixo sensível, um ausente que se torna presente. Como consequência desse diálogo, surge como um corte, uma ruptura, uma divisão na solidão de cada homem.

Usando o exemplo do espelho, de que falava: os espectadores estão face a um espelho - o palco - pelo qual se devem interessar, do mesmo modo que o palco, face a um espelho - o público -, deve demonstrar interesse por quem vê. Nas suas últimas peças, ficamos com a sensação de que a presença do espectador é secundária...

Não acredito nisso. Para mim o espectador é a chave. E o destino do teatro é o espectador. É a sua intimidade que o faz avançar. Um teatro sem espectadores não faz qualquer sentido. Um teatro para um só espectador não faz qualquer sentido. São precisos dois. Como espectador quero partilhar com um desconhecido uma relação de contemplação que poderíamos dizer espiritual.

Mas não religiosa?

Sim, se quiser usar o princípio etimológico da palavra religião: estar junto. Não há qualquer relação com a ideia de salvação.

Nem de um teatro que possa reescrever a História?

Não, isso não me interessa. O teatro é apenas um sintoma da História. Não tem qualquer outra dimensão. Não serve para criar uma nova ideia do homem, nem para proporcionar a felicidade, a alegria ou a esperança.

Daí a recusa de um fio narrativo explícito no interior dos seus espectáculos?

Sim. O meu trabalho está mergulhado na corrente da forma, que pertence a todos. O historiador alemão Aby Warburg falava da corrente das imagens, a Pathosformel. Há que pensar na história de cada imagem como um rio que passa através da história do Homem. E nós podemos cruzar essas imagens, que existem desde o tempo das cavernas. Nada me pertence e eu não invento nada, apenas componho e conecto imagens a partir de presenças, de obsessões. E o espectador fará a mesma coisa, como se cada imagem fosse uma estrela que pertence a diferentes constelações. É ele quem traça as linhas entre os diferentes pontos de luz. E isso é uma experiência, ao mesmo tempo, profundamente individual e comunitária. E é essa a grande aventura do teatro, que anuncia o futuro.

E o encenador é o messias que leva o espectador nesse caminho?

É preciso que o encenador desapareça. Castellucci não existe. Não é o meu estilo, o meu método, a minha dramaturgia ou a minha mensagem que interessa. Eu quero abandonar o espectador. Não lhe quero pegar na mão como a uma criança e dizer-lhe: "Olha, vês?" Um artista não é um médico, é alguém que vive entre os outros. Detesto essa ideia de guru e esse modelo de ascetismo da imagem. É extremamente naïf.

E, no entanto, com a notoriedade vem a responsabilidade de dar alguma coisa a quem o vê.

É verdade e é profundamente perturbador.

É impossível escapar?

É preciso escapar. Tornou-se um peso que nos pode deixar num estado de adormecimento. E, depois, não há qualquer receita para permanecer atento.

Ao partir de Hölderlin, passando por Rothko, e chegando ao buraco negro, o que sugere é um mergulho numa narrativa universal sobre o apagamento?

Talvez. O apagamento é em si mesmo uma imagem, mesmo na história da arte. Os artistas precisaram sempre de escolher, cortar, queimar e apagar uma imagem. Eu sou herdeiro dessa forma. E a mim não me compete preencher os espaços vazios que ficam entre as imagens. As pessoas podem reconhecer as formas porque, de facto, elas lhes pertencem. Estamos permanentemente mergulhados em imagens.

Mas como se passa consigo durante o processo de criação? Há uma hierarquia dos elementos ou imagens que são prioritárias perante outras?

É uma arte da combinação. É preciso levar as coisas para palco para perceber as ligações alquímicas, ou lógicas por vezes. É preciso esperar que a imagem fale por si. Tal como no processo de revelação de uma fotografia, quando lançamos todos os elementos para o palco, eles surgem ao mesmo tempo. E é preciso respeitar essa regra. Não há nenhum totalitarismo de um elemento sobre o outro. E, depois, o material sobre o qual se trabalha é o tempo dos próprios elementos. Por vezes é preciso levá-los até ao momento da ruptura. E isso é o que de mais belo e difícil existe no teatro. O tempo é o primeiro material plástico e o mais precioso dos bens com o qual um encenador trabalha. Como na música, há diferentes tempos. É preciso retirar, cortar, às vezes há que se ser muito breve.

Como se fosse uma colagem?

Sim, é a atitude do espectador que muda. As suas reacções vão surgindo como uma escultura na sua mente.

Defende, assim, o apagamento do próprio desejo de explicação?

Sim, não se podem demonstrar intenções. Isso é terrível. A coisa não me pertence, mas ao espectador. Eu, como espectador, quando percebo as intenções do encenador, desisto. Quero empenhar-me profundamente num espectáculo e ficar escandalizado por ele. Quero cair lá dentro e ser visto por ele. Um espectáculo não é um objecto de design. O teatro não é um acto de restrição nem um gesto autobiográfico. Nem mesmo biográfico.

Mas, se começa um espectáculo com "o suicídio social" de Empédocles, certamente pretende condicionar a leitura do espectador.

Mas o espectador pode e deve perder-se. Há um caminho para se fazer. Não é o que se passa que interessa. O espectador pode aceitar, recusar, aborrecer-se... Trata-se de uma viagem mental. O teatro não se passa no palco, mas na vida de cada espectador. Porque o que é um palco? Um somatório de objectos, de corpos. Não é esse terreno seco que faz o teatro. Ele só oferece as imagens. O espectáculo existe a partir das conexões que o cérebro produz a partir da visão que tem. Não é como na televisão, em que se vê uma imagem final. No teatro ela forma-se à nossa frente, como uma epifania individual. O verdadeiro espectáculo, a verdadeira imagem pertence a cada espectador.

O teatro é uma das artes que não se restringe a nenhum objecto, não há nada. Quando o espectáculo termina, não fica nada. Fica tudo nos corpos, no cérebro, na memória. É absolutamente frágil. Nesse sentido, e no que respeita às imagens, é a mais forte das artes, porque tudo se transforma, tudo é vida. O teatro existe contra a realidade, porque é outra realidade. O nosso olhar sobre os fenómenos muda. Descobrimo-nos no acto de ver. O gesto de observar é o primeiro acto teatral.

Nesse sentido, o corpo do actor existe enquanto entidade individual ou como mensageiro de uma imagem?

Diria que como mensageiro de uma imagem. O corpo não é interessante, porque tudo é um corpo. Se falarmos do corpo do espectador, isso sim, é interessante; Antonin Artaud foi muito mal compreendido quando falou do corpo, porque aquilo de que falava era do corpo do espectador, não do corpo do actor, que é algo absolutamente desinteressante com todas as suas sophias, as suas técnicas, os seus conhecimentos. A não ser, claro, que esteja ao serviço de outro corpo.

O do encenador?

Não, o do espectador. Tudo o resto é um aborrecimento. O artista deve desaparecer.

Se Castellucci, não existe, e desaparece, vai para onde?

Ah... Para as montanhas.

Como um eremita?

Não, como os peregrinos. Não sou místico. A salvação não é assim tão interessante. Prefiro ser um pastor numa paisagem agradável [abre os braços como se abraçasse o que o rodeia].

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