Sob o manto nada diáfano da hipocrisia

Já na América de Trump filhos e genro do Presidente ocupam, sem problemas nem vergonha, alguns postos cimeiros da Administração. E em muitos regimes autocráticos e países do Terceiro Mundo é banal vermos cônjuges e filhos dos Presidentes desempenharem as funções mais influentes no governo.

O tema está longe de ser uma singularidade portuguesa e basta recordar o recente exemplo francês para confirmá-lo. Com efeito, para distanciar-se dos maus hábitos de uma classe política com tendência para abusar dos favoritismos e empregos familiares no Governo, Parlamento e outras instâncias do poder, Emmanuel Macron decidiu estabelecer, como uma das medidas mais emblemáticas do início do seu mandato, um quadro legal muito severo para dissuadir os eleitos dessa tentação (o candidato presidencial da direita, François Fillon, que colocara mulher e filhos em lugares mais ou menos fictícios, foi, aliás, punido eleitoralmente por esse abuso).

Mas já na América de Trump filhos e genro do Presidente ocupam, sem problemas nem vergonha, alguns postos cimeiros da Administração. E em muitos regimes autocráticos e países do Terceiro Mundo é banal vermos cônjuges e filhos dos Presidentes desempenharem as funções mais influentes no governo e nos negócios (os angolanos Dos Santos constituíram um exemplo paradigmático).

O que torna o caso português particularmente “picante” e matéria apetecível da gula populista – conjugado, para mais, com a forma como os partidos do “centrão”, na ausência de um verdadeiro código de conduta, insistem em pactuar com as incompatibilidades parlamentares de advogados e outros profissionais – é o facto de se ter tornado, entretanto, a questão quase única das próximas disputas eleitorais, tendendo a eclipsar qualquer outro tema ou matéria de debate. Isto, para além de suscitar também sintomáticos apagões de memória e manifestações de pura hipocrisia – como aconteceu com Cavaco Silva, “esquecido” de que já nos seus tempos de primeiro-ministro o recurso a familiares próximos era hábito corrente nos elencos governativos.

Com efeito, este é um tema susceptível de tornar-se monotemático, até por facilidade e demagogia propícias ao populismo que, na ausência de partidos dos extremos, tende a ser recuperado por partidos do sistema, manifestamente em crise de programa ou de alternativas consistentes, como é o caso do PSD ou do CDS. Se o PS deixou crescer a mancha até ter deixado de a ver, contemporizando com os seus efeitos perversos como se fossem normais ou descobrindo tardiamente a necessidade de recorrer a um quadro legal que os elimine (é também a ideia do Presidente Marcelo, na senda do Presidente Macron), nenhum partido do sistema escapa, no seu percurso histórico mais actual ou recuado, a idênticos pecados de falta de moralidade (nem o insuspeito PCP prescindiu da utilização de transportes públicos de uma autarquia que controla para trazer manifestantes a cortejos da CGTP, tal como o Bloco fora apanhado no caso Robles quando se propunha combater os abusos do alojamento local).

Face a tudo isto é a credibilidade do regime que começa a estar em jogo, para além do debate sobre a necessidade ou não de legislar de forma mais severa e cirúrgica sobre as incompatibilidades familiares ou profissionais (a longa e triste experiência da comissão para a transparência redundou num fiasco memorável). As leis são importantes e decisivas, sem dúvida, mas o fundamental é a consciência ética e a cultura cívica da democracia que devem presidir ao acto de legislar e governar (ou actuar politicamente seja em que território for). Ora é isso que falta cada vez mais à nossa democracia, enquanto cada qual lava as mãos das suas responsabilidades, num salve-se quem puder escondido sob o manto nada diáfano da hipocrisia.

P.S. – Quero agradecer as referências tão afectuosas e generosas que António Lobo Antunes me fez numa recente entrevista à revista Sábado. Tenho saudades dos tempos em que ele era cronista deste jornal, tal como o nosso comum e inesquecível amigo José Cardoso Pires. 

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