Conhecendo a grande, imensa, Kira Muratova

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Ernesto Ruscio/Getty Images

Há alguns mártires na história do cinema da URSS, como foi o caso de Sergei Paradjanov, e depois há uma quantidade de gente que, sem ter sofrido tanto pessoal e profissionalmente como sofreu o realizador de Cavalos de Fogo, viu a sua obra ser dificultada, censurada, mutilada, escondida. Ao ponto de terem sido precisos muitos anos — e o fim dum regime político — para que, finalmente, compatriotas e estrangeiros se pudessem aperceber da grandeza do que ali estava. Há poucas semanas morreu, com 94 anos, um soberbo realizador cuja obra só recentemente pôde ser redescoberta e amplamente divulgada, Marlen Khutsiev. No ano passado, tinha morrido outro símbolo dessa modernidade amaldiçoada do cinema soviético, Kira Muratova (1934-2018), nascida na Moldova de mãe judia e pai russo, mas fortemente ligada à Ucrânia, cuja nacionalidade adquiriu depois da independência, e onde viveu (na cidade de Odessa, a das escadarias imortalizadas por Eisenstein no Potemkin) e filmou parte substancial da sua obra. Que permanece, não só em Portugal, largamente desconhecida ou de conhecimento lacunar, mesmo em meios cinéfilos. Que se aproveite, então, o Festival de Cinema e Literatura de Olhão (FICLO), que até 11 de Abril levará à cidade algarvia nove filmes de Kira Muratova, em ciclo não integral mas seguramente a mais completa mostra da realizadora já feita em Portugal.

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Muratova tem a dúbia honra de ter realizado o único filme censurado durante a perestroika, em simultâneo o último filme proibido durante a vigência da URSS: falamos de O Sindroma Asténico, de 1989, que entre os buracos nas malhas da censura conseguiu chegar ao festival de Berlim, e dar nas vistas de críticos ocidentais (Serge Daney, em particular, escreveu belas linhas a propósito daquela descoberta). É talvez a obra prima de Muratova, um retrato da vida quotidiana no estertor de um regime apodrecido, sem alusões políticas directas (ou pelo menos sem nada de panfletário), onde a “astenia” é figura de estilo poética (“adormecer pode ser a reacção mais agressiva”, dizia a realizadora na altura) tanto como a descrição dum torpor social (aquelas cenas iniciais no metropolitano moscovita). Enigmático e alusivo, profundamente imaginativo e criativo (na estrutura narrativa, no uso da música, da montagem, da “meta-ficção”), ainda é porventura o filme mais elucidativo sobre o que era viver na URSS em vésperas do seu colapso. Mas há mais para ver, os filmes feitos entre os anos 1960 e 1980, quase todos esquartejados pela censura Breves Encontros e O Longo Adeus, muito modernos, muito nouvelle vague, sem nada de “realismo socialista”, ou “Conhecendo o Grande e Imenso Mundo”, que parte de uma subversão desse realismo, “socialista” e operário), e os filmes pós-URSS (Muratova filmou até 2012), que entre variações de Tchekhov e variações sobre o “noir” revelam uma cineasta especialíssima, ainda à espera de ser devidamente posicionada no panorama do cinema do último meio século.

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