Uma comédia existencial de tabernas

Presença habitual nos Artistas Unidos, a escrita de Enda Walsh trata agora a brevidade da vida ao ritmo de uma comédia slapstick. Ballyturk é, para Silva Melo, a mais louca das peças do irlandês.

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Jorge Gonçalves

Numa divisão muito grande, demasiado grande (de acordo com as especificações do dramaturgo Enda Walsh), tão grande que inclui espaços para dormir, para tomar banho e para vários momentos de lazer, dois homens passam os dias a ser sobressaltados por um relógio de cuco e por um despertador, a reproduzir gestos do quotidiano (que parecem isso mesmo: reproduções e não acções espontâneas) e a discorrer de forma mais ou menos fantasiosa acerca de uma pequena localidade irlandesa (e ficcional) chamada Ballyturk.

Os diálogos entre os dois tomam, com frequência — para não dizer o tempo todo —, caminhos bizarros. Pouco depois de um deles dar um par de saltos, com mãos a fazer de patas e nariz inquieto como reconhecemos nos coelhos, simula esfaquear alguém. Pouco depois, hão-de lembrar-se que acordaram previamente que os coelhinhos têm cinco patas — mesmo que não estejam certos de que cinco sejam suficientes. E questionam-se se é possível que “um coelhinho leve sempre consigo o leque completo de características durante o dia, enquanto saltita entre tarefas”. Ser, portanto, de uma só vez, “inocente-gentil-carinhoso-generoso-simpático-tímido-reservado-frio-calculista-deso-nesto-cruel-malévolo-assassino-e-selvagem”.

Essa troca de palavras daquela que o encenador Jorge Silva Melo considera a “peça mais louca de Enda Walsh” — nos Artistas Unidos houve já Disco Pigs, Acamarrados, A Farsa da Rua W, Penélope e O Novo Dancing Eléctrico —, em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, entre 27 de Março e 4 de Maio —, Ballyturk, lembra-o dos tempos em que viveu em Londres, em 1969 e 70, quando estudou na London Film School. “Esta conversa sobre coelhos é conversa de bêbedos”, defende. “Só um bêbedo ou um actor é que pode entregar-se a essas discussões se os coelhos têm três ou quatro [ou cinco] patas. Onde eu vivia, em Earls Court, só havia irlandeses a beber cervejas e a dizer estas piadas.” Ou seja, Ballyturk, na opinião de Silva Melo, coloca em palco o “pub anglo-saxónico” desse tempos, quando os irlandeses tomavam conta dos estabelecimentos nos arrabaldes da cidade e se encharcavam de cerveja enquanto davam largas a um humor desabrido e desconcertante.

O crítico de teatro do The Guardian Michael Billington, cita Jorge Silva Melo, terá proferido acerca de Ballyturk: “Não percebi nada e fiquei fascinado. Não percebo a peça, mas cheira a cerveja.” Na sua crítica para o jornal inglês, Billington resumiria Ballyturk como a combinação entre “uma comédia física obsessiva e uma meditação sobre a brevidade da nossa existência terrena”. E descrevia a cena partilhada por Cillian Murphy e Mikel Murfi (aqui nas mãos de Pedro Carraca e Américo Silva), em que um deles desafia o outro a mimar 17 personagens dessa inexistente localidade irlandesa em 30 segundos, como “Sob o Bosque de Leite [de Dylan Thomas] interpretado por Buster Keaton”.

Em Sob o Bosque de Leite — texto para teatro radiofónico passado ao cinema por Andrew Sinclair (com Richard Burton e Elizabeth Taylor) e encenado em Portugal por Sandra Faleiro, no Acarte, em 1996 —, lembra o encenador, “dois homens passeiam à beira de um rio enquanto toda a aldeia dorme e vão falando dos habitantes. De manhã cedo, toda aquela gente acorda e são uns piores do que os outros — criminosos, assassinos, aldrabões”.

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Jorge Gonçalves

Embora a peça possa revelar-se de difícil descodificação, Silva Melo acredita que o espectador não está obrigado a compreendê-la porque se entra em Ballyturk engrenando no ritmo de splastick que dita os movimentos coreografados dos dois homens. Os dois obedecem a uma “comédia grosseira, ordinária, de taberna irlandesa”, com indicações de Enda Walsh de um absoluto preciosismo — como “passados 14 segundos da canção, 1 [as personagens são identificadas por números] volta-se de repente, aproxima-se rapidamente e tira um par de calças daquele armário (…)”. O ritmo é, por isso, fundamental. E tudo o que acontece em palco é ditado por essa relação com o tempo, um tempo precipitado, empurrando as personagens o mais possível para a proximidade da morte. Os alarmes, a anunciar a chegada do fim, sucedem-se: é o despertador que rasga o silêncio, o relógio de cuco que lembra que o tempo está a contar, o temporizador do micro-ondas que torna tudo ainda mais sufocante.

“É esse o segredo da peça”, acredita Silva Melo. “Mesmo se não seguimos as histórias sobre os coelhinhos de cinco patas, percebemos a brevidade da vida e a morte iminente de uma das personagens.”

Clausura

Numa divisão muito grande, demasiado grande, tão grande que inclui espaços para dormir, para tomar banho e para vários momentos de lazer, há dois homens — até que passam a ser três. Por detrás de uma cortina, existe uma colina verde por onde desce o terceiro (António Simão), na única escapatória daquele espaço fechado e sem comunicação com o exterior. Até aí, na verdade, há vozes que chegam para lá das paredes, mas com as quais a comunicação é impossível. “Estamos no idílio da morte”, acredita Silva Melo. “A morte, para o Enda Walsh, é a paisagem irlandesa. E é engraçada a contradição: estes homens têm imenso medo das vozes dos vizinhos, odeiam-nos, mas depois lá fora aquilo é lindo.”

A clausura a que as personagens de Enda Walsh estão votadas é uma constante desde Misterman (1999), uma das suas primeiras peças. O espaço exterior aparece sempre como um lugar de promessa ou memória de uma vida feliz (ou, pelo menos, melhor), mas é também algo ameaçador e aterrorizador, uma insuportável intromissão na segurança desalentada em que as personagens vivem. Nos textos de Walsh, cada vez mais beckettianos, entende o encenador, as personagens estão entregues a rotinas mecânicas que tornam os dias iguais e a nada conduzem, no mais débil e desesperado apego à vida. Se em Misterman, que Elmano Sancho protagonizou e dirigiu, é tentador identificar a versão pessoal de Enda para A Última Gravação de Krapp (de Beckett), em Ballyturk tanto Billington como Silva Melo vêem o surgimento do terceiro homem como o Godot que nunca chega na peça a que dá nome.

Em Ballyturk pode também ver-se o Fim de Partida de Beckett. Só que aqui, exagera o encenador, encontramos “a versão Malucos do Riso do Beckett”. Ou melhor: pode entender-se como “tirar o Beckett da universidade e pô-lo perto das tabernas”.

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