Futebol feminino: um crescimento sustentado a gerar reconhecimento

A chegada de grandes clubes espoletou o desenvolvimento da modalidade: há mais praticantes, mais mediatização, mais contratações e melhores resultados. E mudanças em curso já assumidas pela UEFA.

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Sporting e Sp. Braga, as duas equipas mais fortes dos últimos anos LUSA/NUNO ANDRÉ FERREIRA
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O Boavista, um histórico do futebol feminino e da I Liga LUSA/PAULO NOVAIS
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A equipa do Benfica, que tem batido recordes no segundo escalão DR
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A selecção nacional, que conseguiu chegar ao Europeu de 2017

“O potencial do futebol feminino não tem limites”. A frase é de Aleksander Čeferin, presidente da UEFA, numa visão complementada pela do “vice” Michele Uva: “O futebol é para todos (…) Este é um dos maiores saltos culturais [diferença entre homens e mulheres] que o desporto ainda tem de fazer”.

Os dirigentes justificaram, desta forma, a medida de separar as finais da Liga dos Campeões masculina e feminina. A partir deste ano, a Champions feminina terá um evento próprio, em Budapeste, com a masculina a ser jogada em Madrid. “A ideia é dar ao jogo feminino uma plataforma só para si, para continuar a crescer e tornar-se, por direito, um evento e um espectáculo televisivo imperdível”.

Em Portugal, o cenário é semelhante e o futebol feminino está a crescer a todos os níveis: número de praticantes, competitividade dos campeonatos, mediatização da modalidade, exportação de talentos, contratação de jogadoras e até resultados da selecção nacional. Ao PÚBLICO, Alfredina Silva, internacional portuguesa na década de 80, fala de uma mudança cultural: “Há, sobretudo, uma abertura maior das famílias, que já aceitam que uma menina queira jogar futebol. Isso permite ter equipas de formação, algo totalmente novo relativamente às décadas de 80 e 90”.

Segundo dados da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 1990 até 2018 o número de jogadoras, a nível sénior, subiu de 375 para 1073. A nível europeu, um relatório da UEFA também aponta para dados de claro crescimento: de 2017 para 2018 houve mais 7,5% de jogadoras federadas, o número de jogadoras profissionais e semiprofissionais duplicou nos últimos quatro anos e o número de equipas de jovens raparigas subiu de 21 mil para 35 mil. Mónica Jorge, ex-jogadora e actual directora da Federação Portuguesa de Futebol, já chegou a assumir, em 2017, ao Bancada.pt, que Portugal “ainda está muito longe do patamar europeu”, falando, no entanto, de um crescimento “de uma forma sustentada”. 

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A chegada dos “tubarões"

Mais praticantes trazem mais interesse e mais interesse traz “tubarões”. A entrada em cena de Sporting, Sp. Braga ou Benfica trouxe uma combinação de estratégias: ao aumento de praticantes e ao desenvolvimento da formação de jogadoras adicionou-se a lógica de “pescar” talento estrangeiro. Segundo um relatório da FIFA, que analisou o panorama mundial do futebol feminino, Portugal ainda tem números pouco relevantes em todas as áreas analisadas... menos no número de contratações de jogadoras: surge no top-10, atrás de potências como Alemanha e França.

A Liga Feminina portuguesa, a nível mundial, ainda é das poucas que conjuga a ausência de limite máximo de estrangeiras com a obrigação de ter, na ficha de jogo, um mínimo de jogadoras formadas localmente (oito). Estes dados atestam, sobremaneira, a ideia da FPF para o desenvolvimento do futebol feminino, que passa por fomentar a formação, sim, mas com alicerce na procura de talento estrangeiro.

Alfredina Silva fala de “um aumento de visibilidade”, com a entrada das equipas poderosas do futebol masculino, mas dá conta, sobre a contratação de jogadoras estrangeiras, de um misto de sensações. “Para a Liga é bom, porque aumenta o nível competitivo (...), mas para as jogadoras portuguesas talvez não tanto, porque para apostar nas estrangeiras estamos a apostar menos nas portuguesas”. “Talvez limitar o número de estrangeiras pudesse ser uma solução”, traça.

Para já, a estratégia de contratar lá fora tem tido efeitos claros. Ainda que generalizada, esta premissa advém também da observação da classificação da primeira divisão: genericamente, as equipas estão organizadas, na tabela pontual, pela mesma ordem da “classificação” do número de estrangeiras no plantel (o Boavista é a excepção) e os três primeiros classificados (Sp. Braga, Sporting e “Fofó”) estão no top-4 do número de estrangeiras.

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Há, ainda, o claro benefício de ter jogadoras experientes. Prova disso é o facto de os três primeiros classificados estarem, também, no top-4 em média de idades. Na cauda da classificação surgem as equipas mais jovens, as únicas com médias abaixo dos 22 anos. Este facto não é indissociável da impossibilidade de, para já, ter um número alargado de equipas profissionais. As equipas acabam por apostar, sobretudo, em jogadoras jovens – estudantes, na sua maioria –, mais disponíveis para conciliar o futebol e os estudos. Trata-se de uma inevitabilidade que Alfredina Silva associa ao “fosso competitivo” entre as equipas do topo da Liga e as equipas menos fortes: “Obviamente que se nós só treinamos duas ou três vezes por semana fica difícil competir com equipas que treinam todos os dias”.

Ainda em matéria de mediatização do futebol feminino e aproveitamento de talento estrangeiro há o caso do Benfica, na segunda divisão nacional. A equipa que se estreia, nesta temporada, na modalidade, venceu a Série D só com vitórias – exponenciadas pelos 273 golos marcados (média de 17 (!) por jogo) e zero sofridos –, e, tal como os líderes da primeira divisão, tem muito potencial recrutado além-fronteiras (no caso, 11 jogadoras brasileiras, uma espanhola e uma cabo-verdiana).

Apesar desta abertura ao potencial estrangeiro, o futebol feminino está, no que concerne às idades e às jogadoras contratadas lá fora, bem abaixo das principais Ligas mundiais. Um estudo do Observatório do Futebol mostra que, nos seis principais campeonatos, a idade das jogadoras é bastante mais elevada: quase 25 anos, em média, contra apenas 22 em Portugal. Em termos de talento estrangeiro, a diferença entre Portugal e o futebol de topo é ainda maior: 22% de jogadoras estrangeiras, em média, nas principais Ligas, um número que, na Liga Portuguesa, apenas o Sp. Braga alcança, com as dez jogadoras estrangeiras que tem no plantel.

A partir de 2020, com a UEFA a aumentar as verbas encaminhadas praàs Federações para desenvolvimento do futebol feminino, a FPF terá em mãos 150 mil euros (mais 50 mil do que recebe actualmente). Uma ajuda extra na missão de levar o futebol feminino de um nível médio, no panorama mundial, para o “pelotão” da frente.

Uma portuguesa no maior jogo de sempre

Em 2017, o recorde de assistência – mais de 12 mil espectadores – registado na final da Taça de Portugal, entre Sporting e Sp. Braga, atestou o crescimento do futebol feminino. A estreia da selecção num Europeu, em 2017, ou o emergir da Algarve Cup, como paragem “obrigatória” para as principais selecções mundiais, têm dado ao futebol feminino uma atenção que não tinha. Atenção que advém, igualmente, de um maior apoio prestado pela FPF, na última década, bem como do crescimento evidente da atenção mediática, cuja face mais visível são as transmissões televisivas. 

Portugal tem feito, ainda, algo que o futebol masculino já faz há vários anos: exportar os seus melhores talentos para o topo da Europa. Apesar de Alfredina Silva apontar, ao PÚBLICO, uma elevada taxa de desistência de atletas (fruto da falta de profissionalização das competições e dos clubes), importa destacar que jogadoras como Andreia Norton, Cláudia Neto e Ana Leite competem na Liga Alemã, enquanto Mónica Mendes, em Itália, ou Jessica Silva, em Espanha, jogam nos competitivos campeonatos do sul da Europa.

Também em Espanha joga Dolores Silva. A portuguesa, de 27 anos, esteve presente no histórico Atlético Madrid-Barcelona, que bateu no passado fim-de-semana o recorde de assistência no futebol feminino, com 60.739 pessoas a esgotarem o Wanda Metropolitano - a nível europeu, o máximo de assistência era de 50.212 espectadores, registado na final da Liga dos Campeões de 2012, entre Lyon e Frankfurt. A média, que se transferiu no início da época de Braga para Madrid, entrou na segunda parte, participando na derrota do Atlético, por 2-0.

Um certame desta magnitude ainda é utópico, para a realidade portuguesa, mas uma coisa é certa: antes, o futebol masculino era apenas “futebol”. Agora, Portugal está cada vez mais perto de ter mesmo de lhe chamar futebol masculino. E isto certifica o crescimento tremendo do lado feminino do desporto-rei.

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