O meu grão de areia para salvar o planeta

Um apartamento, um carro, um ocupante, 81,5 quilos de dióxido de carbono emitidos na primeira semana, 65,3 na segunda: catorze dias chegam para baixar as emissões em 20%. Nesta experiência para tentar reduzir a pegada de carbono, notou-se mais a mudança nos transportes e nas compras do que no consumo em casa.

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João Catarino

A chuva é tanta ao princípio da manhã que abafa o barulho do trânsito que se avista da janela do quinto andar. A meteorologia promete um dia de muita água sem extremos — apenas chove, não faz vento, nem calor, nem frio nem furacões —, uma trégua climática para começar duas semanas que prometem mostrar quantos quilos de dióxido de carbono (CO2) atiro para o ar que respiro, quantos consigo evitar e como chego lá. Pode ser pouco tempo para uma “transição energética” individual, guiada por uma espécie de selfie da pegada de carbono, mas sempre são 14 dias de vida.

A subida da temperatura média do planeta, responsabilizada pelos fenómenos climáticos extremos, é o problema que mais forças mobiliza hoje no mundo quer pelos que a combatem e para ela alertam, quer pelos que a negam. O CO2 é o principal gás com efeito de estufa (GEE) que a actividade humana emite para a atmosfera (os outros são o metano, o azoto e os gases fluorados), pelo que a grande mensagem é “descarbonizar” urgentemente.

Cientistas, media, políticos empenhados e organizações multilaterais acreditam que o aquecimento global causado por uma sociedade sôfrega por combustíveis fósseis chegou a níveis demasiado perigosos. O último relatório da Conferência Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), de Outubro passado, traçou “medidas sem precedentes” para evitar o aumento até 2 graus Celsius face à era pré-industrial (avançando já com o limite de 1,5 graus), ligando as emissões de GEE ao problema mais vasto da própria sustentabilidade do planeta.

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É um desastre para o qual todos contribuem, mas uns mais (EUA, China, Índia e Europa, que são os mais ricos ou os que mais crescem) do que outros (o resto do mundo). Há, assim, quatro mil milhões de pessoas neste planeta — os que vivem nos países mais poluidores — que são mais responsáveis por este problema do que os outros três mil milhões e meio. Cada um dos dez milhões de portugueses está no grupo dos mais responsáveis, eu incluída.

Os grandes números

Dia 8 de Novembro de 2018, ponto de partida. Vivo num apartamento em Carnaxide e trabalho em Alcântara, Lisboa, distância que fica entre 11 e 13 quilómetros consoante o trajecto que faço no automóvel a gasóleo de 2015. Usar o carro é a rotina diária, para ser mais rápido, por inércia e também por falta de alternativas a horas incertas, o que faz de mim um dos 44% da população excessivamente dependente do transporte individual (Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, INE, 2018). Trocar por um carro mais limpo é uma possibilidade dentro de cinco a sete anos apenas. Mudar para o campo não se coloca como opção e os 55 anos são uma “invariável” da equação. Urbana omnívora, às vezes vegan, não estou preparada para uma vida vegetariana.

O programa de Ambiente das Nações Unidas calcula que o mundo, com os 7,4 mil milhões de pessoas que habitavam o planeta em 2016 (último ano com estatísticas comparáveis), emitiu um total de 51.900 milhões de toneladas de CO2, já que todos os GEE são convertidos em unidades de dióxido de carbono. De Portugal saíram 67,8 milhões de toneladas (Inventário Nacional de Emissões Atmosféricas, 2018, da Agência Portuguesa do Ambiente), valor que inclui as emissões geradas por todos os bens e serviços produzidos no país, mas exportados e consumidos no estrangeiro. Os portugueses representam 0,13% da população mundial para 0,13% das emissões globais. Visto a partir desta relação proporcional que muitos outros países não têm, seria um copo meio vazio de razões para descarbonizar.

Mas este valor significa ao mesmo tempo que cada português emite em média quase 6,8 toneladas de CO2 por ano, tanto quanto me cabe também; são 18,5 quilos por dia; e, para quem rasa um metro e sessenta de altura, significa que cada fatia de um centímetro de espessura de corpo gera mais de 40 quilos por ano para se alimentar. É um copo mais de meio cheio de razões, e não parecia.

Nestes grandes números estatísticos em que cabe todo o mundo, como num retrato de família, falta o que cada um faz na vida e no tempo real, nos transportes, na alimentação, nas empresas, nas escolas, com cada pequena decisão que, multiplicada por triliões de triliões de pequenas decisões dos outros milhares de milhões de habitantes do planeta, contribui para as dezenas de milhares de milhões de toneladas de CO2 do mundo. Visto a partir daqui, o aquecimento global passa a ser um problema do meu tamanho, para poder “descarbonizar”. E, já agora, pode chover à vontade a semana toda.

A começar

Os primeiros sete dias destas duas semanas prometem ser fáceis, a vida normal, as rotinas de sempre — “business as usual”, na linguagem da economia. O rasto ambiental do meu consumo centra-se na energia que gasto a deslocar-me, na que foi necessária para os alimentos que como; e também na que gasto em casa. São também os três sectores que mais contribuem para os gases com efeito de estufa em todo mundo, incluindo Portugal. Em 2016 a energia representou 25,7% das emissões, os transportes 24,7% e a agricultura com pecuária 10% (Inventário Nacional de Emissões Atmosféricas, 2018, Agência Portuguesa do Ambiente). Para o peso da alimentação, há estudos que responsabilizam a pecuária por 14% das emissões globais com origem na actividade humana (entre eles, a FAO) e outros que chegam a 29%, ao incluírem todo sistema alimentar.

No caminho para o emprego, ao volante do carro a diesel e no papel de cobaia voluntária, as emissões planetárias de CO2 deixam de ser abstractas, coisa de todos e de ninguém em concreto: sou parte delas, nesta “casa comum” de que falou o papa Francisco em 2015, preocupado com a degradação ambiental do planeta, ainda não existia o Acordo de Paris e o seu objectivo de limitar a subida da temperatura global abaixo dos 2 graus Celsius.

Por quanto carbono libertado para a atmosfera sou responsável na vida real, não estatística? Em que me será mais fácil reduzir emissões? No transporte, na alimentação, em casa? E a roupa que transporto no corpo não devia entrar na equação? Dentro de 14 dias, as respostas.

A pedido do PÚBLICO, Júlia Seixas e Francisco Ferreira — professores do Departamento de Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigadores do Cense-Centro para a Investigação em Ambiente e Sustentabilidade, também conhecidos por serem a coordenadora do trabalho técnico dos cenários do Roteiro para a Descarbonização Carbónica 2050 e presidente da associação ambientalista Zero, respectivamente — dirão se os dados que eu recolher demonstram, em termos ambientais, nada, pouco ou muito. E Alfredo Marvão Pereira, professor de Economia do William and Mary College, nos EUA, que se tem dedicado à investigação nas áreas da energia e do ambiente, fará a análise económica. Este especialista participou na Reforma da Fiscalidade Verde de 2014.

Voltando ao ponto de partida. Os contadores marcam 12.285 kWh de electricidade consumida em vazio e 15.402 fora do vazio, 2294 metros cúbicos de água, 9070 metros cúbicos de gás, para além de 64.259 quilómetros percorridos no carro de 2015 com média de consumo de 6,3 litros/100 — um valor “desconfiável” depois da polémica do dieselgate, mas não há outro disponível. Aponto no bloco, verifico o que há no frigorífico e na despensa — tenho de ir às compras.

Por cada dia, enumero os quilómetros percorridos; os alimentos e a origem geográfica do que como ao pequeno-almoço, almoço e jantar; mais a quantidade de combustível. Guardo ainda espaço para descrever a roupa que levo no corpo, sem saber ainda o que farei com a informação, e fecho com um balanço do dia. No fim de cada semana regresso aos contadores e anoto também o que gastei em gás, água e luz.

São os apontamentos que me recordam que chovia muito no primeiro dia, que saí mais tarde de casa para me preparar para esta nova rotina e que a ideia de um primeiro dia calmo não se realizou. Não por causa do trajecto escolhido — 11 quilómetros em 25 minutos de uma porta à outra —, nem das voltas do resto do dia, que incluíram uma viagem de táxi em trabalho e mais de 40 quilómetros pela estrada marginal de Cascais para uma consulta no hospital da Parede, ao final da tarde. São as compras que frustram os planos, já noite.

As compras de onde vêm?

As compras no hipermercado incluem detergentes, massas, arroz, óleos, peixe, leite, ovos, cereais, café, iogurtes, papel higiénico, papel de cozinha, queijo, carne e legumes. O pão é do comércio local. Tantos alimentos de que não tenho a indicação da origem. De onde vem o café? De onde vem o leite? De onde vem o peixe? De onde vem o pão que como todos os dias?

Alguma informação consta das embalagens ou das placas dos alimentos a granel (as uvas vêm da Sicília, o peixe da Turquia, os dióspiros de Portugal, os cogumelos enlatados de Espanha), às vezes errónea (o café vem de Portugal), ou então não existe (para os flocos de milho e os ovos), o que também acontece quando o produto é de marca branca com a referência “importado e distribuído por...”. E o pão, sem grande certeza, “dos lados de Sintra” — responde o merceeiro do bairro, mais seguro quanto às azeitonas de Sousel, escrito no balde. É frequente a confusão na rotulagem entre a origem do produto e a do seu embalamento/distribuição; por isso, o café e o chocolate de marcas conhecidas são “produzido em Portugal”, as camisolas das lojas chinesas são “made in Italy”, e as farinhas do pão feito nos supermercados não se sabe de onde são.

“De onde vem?” As bisavós contavam que os bebés vinham de Paris na cegonha; os alimentos de hoje podem vir de todos os lugares, de lugar nenhum, de lugares sem sentido ou da central distribuidora de marca branca.

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A hora do costume no supermercado prolonga-se para quase duas: a informação sobre a origem dos produtos é insuficiente e procuro alternativas, umas vezes com sucesso, outras não. Desisto de combater esta barreira dos órfãos de origem, que há-de ser recorrente nesta semana — conto 18 produtos sem referência, sobretudo a granel, mais uns quantos com apenas UE — e volto a poupar no tempo em supermercados e mercearias.

É na segunda semana, quando tenho de fazer opções de menor impacto ambiental, que dou ainda mais valor à falta da informação de que preciso nos rótulos. Volto a gastar tempo à procura das origens e a perguntar-me se custará muito aos produtores e redes de distribuição fornecerem esse dado nas embalagens. Não havendo informação para duas ou três alternativas possíveis, levo o que tenho na mão e acrescento um ponto de interrogação na lista. Ou então desisto, como quando quis comprar pantufas portuguesas — não quer dizer que não existam, não se encontram é tão facilmente quanto as chinesas.

Ao chegar à banca do peixe, já não é só a pegada de carbono que importa, é o risco da exploração excessiva de recursos. O que é mais sustentável à mesa? Peixe de aquacultura da Grécia e da Turquia, ou peixe que corre pela costa portuguesa? Aos critérios das instituições preocupadas com o esgotamento de recursos marinhos, que recomendam a aquacultura, devem escapar países pequenos de grandes águas territoriais com cavala, carapau (dois peixes “plebeus”), congro e peixe-espada-preto (mais procurados e mais nobres), dispensando também alimentos processados com impacto carbónico – e tão mais próximos estão da mesa.

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Para as contas serem razoavelmente certas, peso o que como em casa ou levo na lancheira e aponto na lista das observações — ganhei uma ajudante preciosa, uma pequena balança digital. Para as apenas quatro refeições feitas em restaurantes e em casa de amigos neste período serve a técnica do peso “a olho” do que vem no prato e alguma inquirição sobre a sua origem, sem ousar parecer um fiscal da ASAE. Já à mesa com os amigos surge mais uma questão. Se como em casa deles, de quem é a pegada? Minha ou deles? Há uns anos as sociedades nórdicas debateram este mesmo tema devido ao seu elevado consumo de bens importados associados ao estilo de vida. Os nórdicos decidiram de forma justa que, para as contas serem sérias, a responsabilidade devia ser de quem os consumia, logo, era deles, logo, é minha. E anoto na lista.

Descubro que é mais fácil caracterizar um bife do que uma sopa como deve ser um bom caldo português, com pelo menos quatro ingredientes. Um bocado de carne é um bocado de carne, só peso e origem; um prato de sopa é pelo menos quatro legumes e alguma aritmética, a somar com água e a dividir pelo número de pratos que estão na panela. Chego a um valor que me serve de cábula para as vezes seguintes, excluindo uma sopa no restaurante, de conteúdo indecifrável. Esquivo-me a mais sopas destas.

A primeira semana de medições termina, descubro que ingiro em média 15 ingredientes por dia. Foram nove refeições de carne quase sempre portuguesa, sobretudo do Alentejo, entre bifes (três), bifanas, frango, peru (a excepção que veio de Itália), entremeada, presunto espanhol e fiambre; quatro de peixe de aquacultura (salmão da Noruega), demolhado (bacalhau da Noruega), do Atlântico nordeste (pescada) e filetes de parte incerta; e ainda uma de queijos. Conforta-me constatar que os legumes são quase sempre nacionais, excluindo uns cogumelos enlatados, ervilhas, alface e tomates espanhóis e batata francesa. Já o mesmo não posso dizer da fruta que me faz sentir em viagem várias vezes ao Brasil (manga) e à Costa Rica (banana, abacaxi) e também a Espanha (castanhas) e Itália (uvas). Está tudo na lista.

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Prioridades à mesa

Entro na semana da transição energética da minha vida com mais umas perguntas para responder. Peixe fresco ou congelado? Leite dos Açores ou continente? Banana da Madeira, em vez da Costa Rica e Angola? Deixo de comprar chocolates e bombons por não dizerem de onde vem o cacau de que são feitos? E assinalo a lista de prioridades: reduzir a carne de bovino para metade — uma meta que parece prudente e realista, em vez de um zero radical —, manter a carne branca, provavelmente mais peixe, mais leguminosas, os legumes e a fruta parecem qb. Reduzir também o bacalhau. Sou bem sucedida no primeiro objectivo, falho no segundo. É fácil colocar metas, o resultado é uma incógnita.

A FAO — Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura lembra que a produção pecuária ocupa 80% de toda a terra arável do mundo e só produz 18% das calorias; que a produção de bovinos é responsável por dois terços dos gases com efeito de estufa emitidos por todo o sector da pecuária, o que faz dela a mais “carbónica”; e é a quinta maior fonte de metano, também gás com forte efeito de estufa. Quanto ao bacalhau, vítima da pesca excessiva, da poluição e do aquecimento global, está à beira de ser um refugiado climático, como descobriram recentemente cientistas alemães e noruegueses.

Da FAO para o prato: estudos mais recentes, como o publicado na revista The Lancet, dizem que as quantidades médias de proteína animal a que nos habituámos são excessivas, propondo limitá-las a 14 gramas, um aviso para o desafio que aí vem. Ao menos, a Direcção-Geral de Saúde escreve na sua publicação A Alimentação Inteligente que a quantidade genérica de carne, peixe ou ovos recomendada por dia é 90 gramas, ainda que as tabelas oficiais especifiquem limites para as crianças (mais baixos), homens activos e rapazes adolescentes (mais altos) e se esqueçam das mulheres. Uma omissão sem explicação.

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Do oitavo ao décimo quarto dia, já a cheirar ao Natal e com muitos doces a serem uma tentação, entram o feijão, a soja, o bife, repito contrariada o bacalhau (o segundo foi sem direito a escolha, se o recusasse ficaria sem almoçar), mais peixe da costa (cavala e bonito), do largo (garoupa do Atlântico centro-este de águas portuguesas), de aquacultura (salmão da Noruega e robalo da Turquia), duas refeições vegetarianas e mantenho o número de refeições de carne branca. A mesa de quem vive na cidade tem de “importar” o que come e é um mapa-múndi.

No final, faço cinco refeições de carne, em vez de nove, aumento as de peixe de quatro para sete e ainda incluo duas vegetarianas sem grande esforço ao jantar, que também acalmaram o estômago após dois almoços mais tardios e em quantidade — coisas da vida real que não se passam em laboratório. Quanto à carne vermelha, reduzi-a das sete anteriores refeições para três, duas das quais de bovino (um hambúrguer e um bife mais pequeno) e uma de porco, dou conta de que comi mais ovos na primeira semana, os legumes mantiveram o seu peso, consumi mais batata-doce e fiz alguns estragos para a média com a banana de Angola e a pêra-abacate do Peru por não haver alternativas mais próximas, que compensei com muito mais maçã de Alcobaça e com os últimos dióspiros da época.

Auto-retrato aleatório de um menu desta semana: décimo terceiro dia. Teve leite, café, pão e manteiga ao pequeno-almoço; arroz, pato, alface, tomate, abacate e mel ao almoço; e ao jantar sopa de abóbora, espinafre, curgete, batata, alho francês e azeite e doce de banana e maçã.

A segunda semana passa-se sem esforço e sensivelmente com o mesmo tempo nas compras, 40 euros mais baratas, com mais recurso ao comércio local e com formas mais sustentáveis de consumo: um frango do campo sai mais barato do que quatro bifes de frango do campo; a batata-doce é mais fácil de garantir que é portuguesa, mas nem sempre a aquisição de legumes e frutas no comércio local significa que são produtos locais e/ou portugueses. Na cozinha, a brochura da DGS confirma que as comidas de panela (estufados, cozidos), mais económicas e mais fáceis de confeccionar, são também as mais saudáveis e uma possibilidade mais sustentável — portanto a panela cá de casa é amiga do ambiente.

Para não agravar a pegada, mas entrando na lista, foram também para a mesa os alimentos adquiridos antes destas duas semanas e que tinham de ser consumidos, do mesmo modo nem todos os produtos comprados foram consumidos na mesma semana. A bem da sustentabilidade, não era possível numa semana fazer grau zero da história do frigorífico e do congelador.

Metas em casa

A vida doméstica não sofre alterações, entre máquinas de roupa e limpeza de casa, da primeira para a segunda semana. A máquina de secar funciona sempre que chove e não é possível usar as cordas exteriores para a roupa. O conforto dos electrodomésticos carrega um peso ambiental de forma mais consciente quando anoto a electricidade necessária para lavar e secar.

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No fim da semana “business as usual”, cansada de tantos apontamentos e do tempo que me tomam, rendo-me à quantidade de dados que reuni e que me levam até ao fim da experiência. Das primeiras contas, surpreendem-me sobretudo os 273 quilómetros feitos de carro, somando várias viagens ao hospital que foram excepcionais, mas são da vida real, e os três metros cúbicos de gás. Parece muito, mas em relação a quê?

Imprevistos de monta impedem que a segunda semana comece logo ao oitavo dia consecutivo. Acontece apenas no arranque do mês seguinte, em 10 de Dezembro, com novas perguntas a alinharem-se para estes dias de compromisso de vida mais sustentável. Passo a comprar no fundo da rua? E o gasóleo é melhor simples ou aditivado? E como escapo às embalagens dos produtos que só vêm embalados, por exemplo, a rúcula? Meço a pegada de um jornal ou de um livro pelo peso do papel? E a tinta?

O plano de reduzir para metade o número de refeições com carne não é o único da segunda semana, ainda assim é o mais ambicioso. Nos restantes aponto para descidas de 10%, o que me parece razoável numa semana. Terei, por isso, de ficar abaixo dos 45 kWh de electricidade gasta na primeira semana e, melhor, usá-la mais à noite e ao fim-de-semana e menos durante o dia. O sistema eléctrico português é mais renovável no período da noite, quando trabalham sobretudo as eólicas e as barragens, em vez das centrais a gás e carvão portuguesas e das nucleares espanholas. Sessenta e três por cento da luz que consumi na primeira semana foi nas horas fora de vazio, ou seja, no período mais poluente, e 38% nas de vazio, segundo o meu contador. Pouca é a informação que a lei obriga as comercializadoras a comunicarem aos seus clientes sobre o impacto ambiental da electricidade que lhes é fornecida – pouca e desactualizada. A minha factura de Dezembro de 2018 menciona o mix energético do comercializador em 2017, como referência para um consumo que está a ser feito um ano depois: quase 40% carvão, 23% gás e 5,5% nuclear e o resto renovável, resíduos ou co-geração fóssil. Já a APREN informa que 53,1% da electricidade produzida no continente em 2018 teve origem renovável, sendo os restantes 46,9% de fontes de energia fóssil.

Uma variável importante mudou entre estas duas semanas. O tempo está mais frio, embora os dados do IPMA não o mostrem claramente, sente-se sobretudo os oito, nove graus de manhã normais neste Dezembro junto à pequena serra de Carnaxide, mas a parecer mais frio do que costume. Sinto-o nos dois dias em que fico em casa nesta semana, com muitas horas sentada com trabalho em computador e a escrever também à noite, de manta sobre as pernas e agasalho nos ombros — bem diferente do ambiente aquecido no emprego. Não resisto mais, ligo um aquecedor pequeno a óleo que me conforta durante um bom número de horas e ao mesmo tempo parece crescer com a energia que come. Volto a ligá-lo mais outro dia durante várias horas também, em luta contra o frio entranhado nas paredes e no corpo. Temo que esta semana de objectivos ambiciosos caminhe para o fracasso. Estar mais tempo em casa é poupar nos transportes, mas é gastar mais electricidade, gás e água. As janelas estão bem fechadas as portas também, viver numa casa fria torna o país frio, a isto chama-se “pobreza energética”. Um estudo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Nova vem entretanto recordar que Portugal é um dos três países europeus onde as pessoas mais dificuldade têm em proteger-se do frio nas suas casas.

O desconforto destas horas faz-me reler as páginas do certificado energético deste apartamento, que são mais recentes do que o mix energético do fornecedor de electricidade. Diz que é da classe energética D, muito pouco eficiente no aquecimento (138% menos eficiente do que a referência), portanto, um desastre a perder calor no Inverno, mas a precisar de 40% menos energia do que a média para arrefecer no Verão. Menos mal, mas por agora é Inverno.

O pior, segundo a classificação da auditoria, é a qualidade das paredes, o melhor são as janelas com vidro duplo. O documento sugere melhorias de isolamento térmico de pouco mais de oito mil euros de custo, com a previsão de que isso fará poupar na factura anual até 435 euros e chegar à classe B-, um rating energético correspondente a um bom nível de conforto.

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As recomendações do auditor para minorar a minha pobreza energética deixam claro que mantas e aquecedores não resolvem problemas de raiz, que a sorte de muitos portugueses é trabalharem fora de casa, aquecendo-se melhor e não pagando directamente essa despesa (fazem-no indirectamente no seu trabalho).

No final da semana cedo no optimismo em relação a esta “parede” indiferente à poupança que é a casa onde vivo, apesar do cuidado com luzes ligadas, e máquinas de carga cheia. Constato que consumi 64% mais de electricidade do que na primeira semana e também mais nas horas fora de vazio. O que isto vai pesar nas contas finais não sei, mas é garantidamente a subtrair no meu desempenho ambiental.

A ADENE, entidade que gere a base de dados dos certificados energéticos dos edifícios do continente e Madeira, em dados fornecidos ao P2, indica que 23,5% dos documentos emitidos até ao início do ano pertencem ao mesmo tipo de casa. O maior grupo é, no entanto, o da classe C (29,3%), um bocadinho melhor. Estima também que apenas 20% dos alojamentos têm certificação energética.

Carro próprio ou transporte público

Dia 11 de Dezembro, nono dia de experiência. Acabaram-se os dias de trabalho em casa. Tenho de chegar antes das oito da manhã ao emprego. Não programei com tempo um trajecto alternativo ao carro próprio que me garantisse chegar a horas. Apenas sei que para chegar a Alcântara preciso de combinar o autocarro suburbano com o comboio ou o autocarro suburbano com mais autocarro urbano ou com metro e mais autocarro urbano e uma pequena parte a pé — apesar de o século XXI ter começado há 20 anos, continua a não existir o superpasse que junte, no meu caso, autocarro suburbano (Vimeca) e urbano (Carris), comboio (CP) e metro (Metro). É já neste mês de Março que se confirma que o passe único para a Grande Lisboa, várias vezes prometido, será lançado a partir do próximo dia 26.

A mobilidade fica limitada à combinação Vimeca+Carris+Metro ou Vimeca+CP, não há Vimeca+Carris+Metro+CP. O passe para a primeira modalidade custa 49,70 euros, para a segunda 50,45 euros (a preços de 2018, quando a experiência foi feita). Usando o meu carro nos valores máximos (230km por semanax6,3 litros de consumo aos 100kmx1,5 euros por litro de gasóleo), dá 20,5 euros por semana, 82 euros ao final do mês. Esperava uma diferença maior.

As bicicletas, scooters e trotinetes eléctricas partilháveis ainda não chegaram às ruas irregulares e sem vias dedicadas de Carnaxide, pelo que não entram como possibilidade na equação. São sete e vinte da manhã e não arrisco, vou de carro, o que me permite também à hora de almoço ir ao centro da cidade tratar rapidamente de uns documentos; se o fizer em transporte público, no eléctrico conquistado pelos turistas, não terei tempo para tanto. Compenso as emissões desta opção com mais compras a pé no bairro.

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É desde o décimo primeiro dia até ao último (quatro dias) que acerto o passo com os transportes mais sustentáveis. Dois autocarros para chegar ao emprego e regresso antes das nove da noite em comboio e autocarro. No sábado em que trabalhei até às 00h40 (de domingo) tive comboio até Algés 20 minutos depois, mas já não autocarro e lá fui de carro o resto do caminho. Para as horas de maior frequência de passageiros, a combinação autocarro-comboio/comboio-autocarro é a mais directa e menos consumidora de tempo, são cerca de 45 minutos para cada lado, em vez dos 25 minutos a meia hora. Gasto mais meia hora por dia a deslocar-me entre casa e o emprego, duas horas e meia por semana, sem desvios, sem greves, sem atrasos e ando mais a pé. Não sei se o termo justo para estes 150 minutos semanais a mais é “gastar”, como se os tivesse “perdido”  — vendo bem, não recordo em que os “ganhava” anteriormente. Quanto às minhas horas de almoço para tratar de assuntos, o mais rápido para não me atrasar, sem carro próprio, é usar o táxi.

Ao final de um dia, a chave do carro no bolso engana-me. Procuro-o por instantes no parque de estacionamento até me lembrar de um comboio que tenho para apanhar.

As despesas da família

Nestes 14 dias encontro algumas respostas para uma vida mais sustentável. O comércio local tem boas propostas para os produtos frescos, embora nem sempre locais. Para o resto, as grandes superfícies continuam a ser a solução. Há que fazer compras de caminho, não ir de propósito de carro ao hipermercado, usar o transporte público nos dias de horário previsível. Experimento a produção de chocolate em casa, assim sei de onde vem e até pode ser de comércio justo. Opto sempre que possível pelo peixe fresco da costa ou então pelo pescado ao largo congelado ou pela aquacultura mais próxima, Portugal ou Espanha. Não escapo às embalagens plásticas de alguns produtos frescos que só se vendem assim, mas procuro alternativas e levo sacos de casa. Acabaram-se os 14 saquinhos acumulados numa só ida às compras. Quanto às bananas, vou alternando entre a Madeira e as outras origens ou rendo-me ao que houver.

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Chego ao fim da semana a aceitar que a realidade derruba planos e a trocar grandes metas por passos realistas a cada dia. Utilizei alternativas ao carro próprio apenas nos últimos quatro dias e não só gastei 64% mais de energia eléctrica, como foi muito mais no período de dia. Também consumi mais um metro cúbico de gás natural, mas, surpresa, mantive o gasto de água em dois metros cúbicos, o que se deverá a uma nota colada no espelho da casa de banho. Os sul-africanos e a sua campanha 2minuteshowersongs.com põem-me a trautear uma música durante dois minutos, o tempo sustentável para um duche.

Somo: na segunda semana, menos 130 quilómetros — já sem hospital —, mas paguei mais 12,3 euros. Foram 39,3 euros entre gasóleo para o carro e serviços de táxi na primeira semana e 51,6 euros na segunda com gasóleo, transporte público e serviço de táxi. Com passe social, seria menos dispendioso. Em compensação gastei menos 40 euros nas compras para casa, em especial em alimentação, o que se deverá mais à sorte do que à ciência, seguindo a lista das despesas das famílias no último inquérito do INE, de 2015. Das 12 categorias de despesa, utilizei oito, correspondentes a mais de 80% da despesa média das famílias em geral e também das famílias de dois ou mais adultos com pelo menos um idoso.

Constato que a preocupação em fazer um cabaz de despesa de família que reflectisse cada um dos dois modos de vida fez-me gastar mais do que o normal, mas coube no frigorífico e no congelador, sem desperdício. A despesa final das duas semanas de 2018 ficou acima do que seria a média deste tipo de família, mas mais próxima do que foi a média nacional de 2015 (ano do último inquérito do INE), ano em que as famílias portuguesas tiveram uma despesa média de 20.363 euros. Extrapolando os valores das duas semanas de experiência para um ano, eu ficaria entre 26 mil a 28 mil euros de gastos.

A alimentação destas duas semanas pesou bastante mais no meu cabaz de compras do que no da média nacional de há três anos, cerca de 32%, enquanto a habitação pesou muito menos, 4,2%, dois pesos desiguais que equilibram o resultado final. Esta família ou gasta mesmo muito mais em alimentação, ou comprei alimentos a mais com a preocupação de preencher os itens da lista de duas semanas. No resto, os resultados estão mais próximos, especialmente nos transportes.

Do ponto de vista dos preços e da fiscalidade, a lógica económica vigente é indiferente ao impacto ambiental dos produtos, tanto faz serem da Lousada, da Sicília, do Vietname ou do Japão, não há sinais que marquem o seu diferente impacto ambiental. Pago mais por uma lata de cerveja do Japão, não por uma eventual pegada carbónica de longo curso, mas porque tem um elevado teor de álcool. Numa entrevista recente ao PÚBLICO, posterior a esta experiência, o economista belga Paul de Grauwe, vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas português, dizia que “no ambiente é evidente a falta de mecanismos que garantam que aqueles que produzem custos para o resto da sociedade acabem por os assumir”. Na minha lista, apenas o gás natural e o gasóleo têm impostos ambientais pagos pelo consumidor (imposto sobre os produtos petrolíferos e adicional de CO2). O resto ou é IVA de 6% ou 13%, ou impostos especiais sobre o consumo e sobre as bebidas alcoólicas, para além das taxas que sobrecarregam os serviços públicos, nomeadamente a água, electricidade e gás, sem ligação a custos ambientais.

Falta decidir o que fazer com a lista do guarda-roupa de duas semanas. Opto por lhe dar apenas uma breve identidade: mais de um terço vem da China, um outro terço provém de parte incerta, no resto distribui-se por Vietname, Bangladesh, Camboja, Espanha, Itália, França, embora estes países europeus sejam cada vez mais centrais de acabamento de peças vindas da China. Num dia normal de Inverno, visto uma blusa do Bangladesh, camisola, calças e casaco que já não têm etiqueta, mas devem ser da China, meias de Itália, sapatilhas do Vietname ou botas de Espanha, e um cachecol da China. No último dia de experiência corro a comprar uns botins feitos em Portugal. Até fotografo a sola, para recordação.

Mais tempo nas compras, mais tempo nos transportes. Uma mãe com filhos adolescentes da periferia de Paris, voluntária numa das últimas iniciativas da Semana sem Carro, queixava-se, no final, de se cansar mais, porque o tempo de que precisava para o transporte público roubava-o ao sono, ainda que tivesse voltado ao hábito de ler um livro durante as viagens. Um jornalista do The Guardian, um “carnívoro” desafiado pelos colegas a ser vegan por um mês, bem referiu o tempo também. Concluía que o ponto central da sua experiência era precisar de mais tempo para confeccionar alimentos a preceito, que não o fizessem ter saudade da carne, nada de baixar o rating do sabor. O tempo faz a diferença.

Raras são as experiências com famílias com crianças de colo, creche ou escola, com ritmos de vida que desafiam as recomendações de facilidade. A família destas duas semanas de transição energética compõe-se de uma adulta activa e uma anciã quase octogenária de vez em quando acamada. É o caso de 21% das famílias portuguesas ou pelo menos assim era nos censos de 2011, quando havia mais de 850 mil famílias iguais em Portugal e no concelho de Oeiras eram mais de um terço da população.

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Sublinho no meu bloco as palavras tempo (a falta de informação adequada nos produtos exige ao consumidor tempo que ele não tem e que o desmotiva), custos (é perigoso para a carteira fazer experiências de uma semana e a lista de compras reflecte isso), choque (quem manda na conta de electricidade e do gás é a qualidade térmica da casa, por mais lâmpadas eficientes que se comprem), investimento (no próximo Inverno a casa será menos fria e não precisará tanto de aquecedores), realidade (não há mudanças radicais em duas semanas), hábitos (resisto ao peixe de aquacultura e passei a andar mais a pé) e incentivos (faltam incentivos reais para uma mudança de comportamentos, por exemplo, uma melhor oferta de transportes públicos, que inclua passes que não limitem o direito à mobilidade, incentivos à aquisição de produtos com melhor pegada ecológica, especialmente informação clara nos rótulos para serem lidos pelos consumidores).

No final da experiência, não arrisco palpites. Falhei a minha própria transição energética em casa, onde parecia mais fácil. Gastei mais 29 kWh de electricidade. Também nem sempre troquei o carro próprio por transportes alternativos. Fiz 62 quilómetros em transportes públicos, num total de 163,2 quilómetros, numa segunda semana de deslocações mais curtas. Quanto à alimentação, intriga-me que a redução do consumo de carne de bovino vá fazer grande diferença no final, como garantem os estudos científicos. Aguardo para ver. Também não tenho ideia do impacto das outras opções mais sustentáveis que fiz à mesa. O grão-a-grão destas duas semanas é uma incógnita.

Resultado: menos 20% de emissões

Chegam entretanto os resultados dos cálculos dos dois académicos. Ao um metro e sessenta altura e 50 quilos de peso, intocados apesar das mudanças de dieta alimentar, junto as medidas que passam a definir-me como emissora de GEE: numa vida sem preocupações, a energia em casa, as deslocações e a alimentação somam 81,5 quilos de CO2 por semana (primeira), enquanto numa opção mais sustentável chego aos 65,3 quilos de CO2 (segunda semana), o que significa menos 20%, no período de uma semana. A surpresa é tão grande que sabe a prémio, como nos dias em que as notas dos testes superavam as expectativas. 

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Poderia então inscrever num cartão do cidadão “da Terra”, ao lado da altura e do peso, uma pegada de carbono anual de 3,3 toneladas? Por um lado, sim: valores abaixo da média nacional per capita de 6,8 toneladas serão provavelmente mais fiéis ao quotidiano de cada um, porque o bolo geral inclui, por exemplo, as emissões do fabrico de bens e serviços que foram para exportação, bem como o consumo de um número crescente de turistas, não residentes, portanto. Este é o problema das médias. Por outro, não: faltam aspectos que não ocorreram nestas duas semanas, mas são parte do ano, especialmente as viagens de carro a casa de família dividida entre os extremos norte (Alto Minho) e sul (Algarve litoral) e uma viagem de avião em férias para o estrangeiro, sem contar com as viagens em trabalho dentro e fora do país. Somando os quilómetros percorridos no ano passado nestas viagens pessoais, percebo que fiz, pelo menos, mais 21.960 quilómetros para além do trajecto corrente casa-trabalho, o que me aproxima mais da média nacional. Era bom um cartão capaz de actualizar a média de emissões a cada semana, como a de consumo de combustível do carro. E a vida de um ano tem mais para além das viagens.

Muita coisa aconteceu nestas duas semanas, olhando para a tabela de síntese dos cálculos: as emissões desceram 55% nos transportes e 19% na alimentação, mas aumentaram 55% na energia em casa. No total, atingi uma poupança de 20%

No mundo ideal, todos consumos da segunda semana deveriam ter sido menores do que na anterior. No mundo real, não. A surpresa não está tanto nos 64% a mais de electricidade (o pior de tudo e já esperado), nem nos 35% a mais de gás natural consumidos, e que fizeram aumentar o consumo de energia em 55%, mas em outros dois aspectos. O primeiro são as variações muito sensíveis na alimentação: um aumento em metade das emissões aos pequenos-almoços da segunda semana, que passaram a ser um pouco mais substanciais, compensado por uma descida significativa das emissões ao almoço (menos 49%) e menos ao jantar (menos 19%). No total da alimentação, baixei as emissões em 19%, aceitando que é mais fácil do que parece adaptar a dieta alimentar, substituindo a proteína da carne vermelha pela de peixe, em especial e por gosto, mas também pela de peru, galinha e pato, e também pela proteína vegetal, de feijão, grão, soja — isto sem baixar o nível nutricional.

A tabela que converte a lista de alimentos por refeição numa cadeia de emissões, desde a produção e transporte até ao consumo, explica o segredo. Nenhum produto na lista tem a mesma pegada de um bocado de bovino, todas refeições que atingiram ou ultrapassaram um quilo de CO2 emitido eram sempre com novilho ou vaca. Numa delas atingi 2,1 quilos de CO2, aconteceu com o almoço do primeiro dia composto de vaca alentejana estufada, legumes e salada de produção nacional, à excepção do tomate espanhol, vinho do Douro, pão de Sintra, laranja do Algarve e um descafeinado de parte incerta. Em contrapartida, o almoço do dia seguinte de sopa de legumes com cenoura, nabo, cebola, alho-francês, abóbora, espinafre e azeite portugueses, pescada do Atlântico nordeste com arroz, pão alentejano e banana da Costa Rica ficou por 360 gramas emitidos, apesar de variado.

Surpreende a diferença entre uma refeição com a mesma quantidade de carne de bovino ou carne branca (90 gramas), mesmo que esta venha de longe: é escolher entre vaca portuguesa e 1,589 gramas de CO2 ou peru italiano e 441 gramas de CO2. Sendo frango (jantar do terceiro dia), ainda é menos, desce para 339 gramas.

Resumindo, foi assim que emiti quase 14 quilos de CO2 na primeira semana e baixei para 11,3 quilos de CO2 na segunda.

O segundo aspecto é a quebra em 55% nas emissões provocadas pelas minhas opções de transporte e o facto de emitir três vezes mais a deslocar-me do que a alimentar-me mostram o potencial de mudança que não explorei a fundo. O impacto de viajar em transporte colectivo em detrimento do individual foi visível na segunda semana, passando de 45,8 para 20,4 quilos de CO2 — a tal redução de 55%. E podia ter sido mais.

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Usei os transportes públicos (autocarro, metro e comboio) como alternativa ao carro, mas não lhes fui totalmente fiel, troquei-os algumas vezes pelo carro e também fiz menos quilómetros na segunda semana, em número mais próximo do meu ritmo diário. Para eliminar estas diferenças, dividi as emissões pelos quilómetros feitos, concluindo que evitei 19% de emissões em termos reais na segunda semana — emiti 0,16 kg/km na primeira semana e 0,13 kg/km na segunda. A poupança poderia ter sido mais significativa, caso a oferta de transporte público encaixasse nas horas e nos modos em que o procurei.

A experiência termina com vários rankings antes desconhecidos na minha vida: os transportes e a alimentação estão no topo da mudança, o gasto de energia em casa fica em último. Este é o aspecto mais difícil de mudar e maior desafio para as famílias portuguesas, que o diga a falta de respostas políticas eficazes até agora como o programa Casa Eficiente. Para distâncias semelhantes, o comboio emite cerca de um terço das emissões do autocarro e um quinto das do meu carro e este emite mais do que a electricidade e o gás em casa, juntos. A transição energética pode começar em 14 dias.

O relatório especial do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC em inglês), de Outubro passado, fala na urgência de “medidas sem precedentes” para limitar o aquecimento global a 1,5 graus e sublinha que o comportamento individual, especialmente na mobilidade, na energia e na alimentação, conta tal como cada décima de grau de aumento de temperatura conta para a tragédia comum.

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Um raro estudo sobre a psicologia e o ambiente, de Harold Searles, admitia, vai para quatro décadas, que a apatia das pessoas em relação à crise ambiental se podia explicar por uma negação inconsciente de co-responsabilidade no desastre, independentemente da parte que caiba a cada um. Um aquecimento global de tamanho esmagador convertido em “um metro e sessenta, 50 quilos, 3,3 toneladas de CO2”, tal como todos os gases com efeito de estufa são convertidos em unidades de CO2, deixa-me ser co-responsável na recuperação dos danos já provocados e na redução das consequências.

A primeira responsabilidade pelo combate ao aquecimento global tem sido atribuída aos governos (o poder da política e da execução) e ao sector empresarial (o poder do dinheiro e do mercado) e em grande parte ainda aos cientistas (o poder do conhecimento e do avanço tecnológico). Aos cidadãos cabe o poder sobre os seus comportamentos, ainda que sensíveis ao que as políticas, o mercado e a tecnologia fazem ao seu bolso e à sua vida.

Debra Roberts, que foi co-presidente de um dos grupos de trabalho dos relatórios do IPCC, acredita que as mudanças de estilo de vida podem fazer a diferença. “Isto não é ciência por controlo remoto; é sobre onde vivemos e trabalhamos, e isso dá-nos pistas sobre como podemos contribuir para uma mudança maciça, porque todas as pessoas terão de ser envolvidas.” Dá dois exemplos: primeiro, “podemos dizer que não temos controlo sobre o uso do solo, mas temos controlo sobre o que comemos e isso determina o uso do solo”; segundo, “podemos escolher a forma como nos deslocamos nas cidades e, se não temos acesso ao transporte público, certifiquemo-nos que elegemos políticos que oferecem opções relacionadas com transportes públicos”. Ou seja, é fazer com que aquecimento global “desça à terra”.