Descarbonização

O consumidor de facto nem precisa de saber que as viagens aéreas têm custos ambientais significativos. O preço de mercado, internalizando os custos ambientais, leva a comportamentos ambientalmente adequados.

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Enric Vives-Rubio

No PÚBLICO deste domingo, Lurdes Ferreira apresenta uma experiência que desenhou e implementou com o objectivo de estabelecer os parâmetros do seu contributo individual no sentido de minimizar a sua pegada carbónica. A conclusão central desta experiência é que com um esforço pessoal cuidado e deliberado foi possível reduzir a sua pegada carbónica em cerca de 20%.

Para um economista como eu, esta experiência representa um testemunho notável para entender à escala pessoal a natureza e a dimensão de um problema global como é o caso das alterações climáticas. A apresentação da experiência, por seu lado, representa uma muito importante fonte de reflexão sobre as diferentes estratégias de abordagem à questão da descarbonização.

A estratégia subjacente a esta experiência pode ser entendida como uma abordagem baseada no voluntarismo individualista tantas vezes encorajado e identificado como central para a resolução dos problemas ambientais. Um cidadão comum, preocupado com a questão das alterações climáticas, decide agir e fazer o que lhe for possível para reduzir a sua pegada carbónica.

Obter uma redução na pegada carbónica individual de 20%, como esta experiência ilustra, é um feito importante e dá-nos uma boa ideia do que podemos fazer sem esperar por outrem. Ainda assim, como se compara este feito com os objectivos ambientais hoje mais consagrados, como seja uma redução das emissões de 45% até 2030, como preconizado pelo Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (​IPCC, na sigla em inglês)? Claro que o esforço individual voluntarista é muito importante. Mas, por si só, mesmo que fosse universalmente e consistentemente assumido por toda a população, fica muito aquém de tais objectivos.

Mais importante, a abordagem voluntarista não é suficiente, nem em termos da sua viabilidade de implementação consistente a nível individual, nem na sua abrangência na mobilização maciça da população. De facto, na ausência de políticas públicas ambientais bem desenhadas e implementadas, não será de esperar que mais do que uma pequena fracção da população consiga atingir estes níveis de sucesso na redução da sua pegada carbónica individual. Nem que essa pequena fracção da população o consiga fazer de modo consistente ao longo do tempo, semana após semana, mês após mês e ano após ano.

Informação, informação, informação

Existe um obstáculo fundamental à exequibilidade do voluntarismo a nível individual e à sua capacidade de mobilização maciça dos agentes económicos. Trata-se da ausência de informação clara e de fácil acesso sobre a pegada ambiental das diferentes actividades económicas. O cidadão comum, ao adquirir um bem ou serviço, não tem a menor indicação sobre o seu conteúdo carbónico. Qual é a origem geográfica de um produto? Como é produzido? Qual é o conteúdo carbónico de um produto ou actividade? Infelizmente, esta informação que deveria ser tão acessível ao consumidor como verificar ingredientes ou calorias é de difícil, se não impossível, acesso.

Este facto obriga o consumidor com preocupações ambientais a despender um volume significativo de esforço — tempo e recursos — no sentido de obter a informação que lhe permita tomar uma decisão informada e que efectivamente reduza a sua pegada carbónica. Nas condições actuais, o esforço necessário é proibitivo para a maioria da população e cria barreiras por vezes intransponíveis, mesmo para quem já esteja motivado a assumir comportamentos amigos do ambiente.

E é aqui que o papel do Estado e das políticas públicas começa. No mínimo, caberia ao Estado estabelecer a regulação necessária à rotulagem ambiental dos produtos. Quanto mais informação for facultada aos consumidores, mais exequível e efectiva se torna a abordagem voluntarista.

Mas o problema também é de escala. A solução tem de ser proporcional à sua natureza e dimensão. O problema das alterações climáticas é, na sua essência, o que os economistas chamam uma externalidade negativa. Os mercados falham ao não conseguirem captar os efeitos negativos para o planeta que as acções humanas induzem através das emissões de gases de efeitos de estufa. O corolário da natureza de externalidade negativa é que, para efectivar a descarbonização, são necessárias políticas que passem pela internalização através de mecanismos de preço — sejam mercados de licenças de emissão, sejam impostos sobre as emissões de gases de efeitos de estufa — dos impactos ambientais das diferentes actividades económicas. Políticas bem desenhadas e implementadas terão a virtude de permitir, aos preços de mercado, captar todos os custos ambientais associados a toda e qualquer actividade económica.

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A activista ambiental sueca Greta Thunberg durante a greve climática estudantil desta sexta-feira, que juntou centenas de milhares de manifestantes um pouco por todo mundo. Greta, de 16 anos, tem encorajado os estudantes a faltarem à escola e a juntarem-se a protestos para exigir uma acção mais rápida contra as mudanças do clima Pontus Lundahl/TT News Agency/via REUTERS

Com este tipo de políticas, a questão da ausência de informação clara e de fácil acesso sobre a pegada ambiental torna-se menos importante. Ao introduzir políticas que garantam que os preços de mercado incorporam os custos ambientais, os sinais de mercado ficam dados. O cidadão, voluntarista ou não, não precisa de investigar a pegada carbónica, já que esta está já reflectida no preço do produto. A decisão do que fazer é simples e ambientalmente correcta. Esta abordagem transforma todos os indivíduos, independentemente do seu voluntarismo, em indivíduos que se comportam ambientalmente de acordo com os melhores padrões de voluntarismo.

Um bilhete de avião

Considere-se, por exemplo, um consumidor que pondera comprar um bilhete para uma viagem aérea. Na ausência de qualquer intervenção pública, o preço do bilhete cobre os custos e os markups relevantes para a companhia aérea, mas não cobre o custo induzido pela viagem em termos de emissões de gases de efeitos de estufa. Que fazer?

A abordagem voluntarista consiste em cada indivíduo investigar de modo a determinar a pegada carbónica do voo que pondera efectuar e de agir em conformidade. A maior parte das pessoas não terão nem tempo nem recursos nem inclinação para fazer tal exercício e o seu comportamento reflecte essa realidade com todo o impacto ambiental adverso que implica.

Um primeiro passo de política económica é o de tornar clara e imediata a pegada carbónica da viagem, por exemplo, ao introduzir essa informação no respectivo bilhete (electrónico, de preferência). Com base nisto, o nosso consumidor voluntarista, e mesmo outros consumidores menos motivados, pode tomar decisões ambientalmente favoráveis ao comparar esta pegada com a de outras alternativas e considerando os custos de tempo e de conveniência associados a todas elas.

Mas considere-se agora a existência de políticas que obrigam o preço de uma viagem aérea a incluir não só os custos e markups privados, mas também, na sua plenitude, o custo ambiental da sua pegada carbónica. Neste caso, qualquer consumidor, independentemente do seu voluntarismo ambientalista, irá tomar a decisão correcta do ponto de vista ambiental sem ter de considerar explicitamente a pegada carbónica. O consumidor, de facto, nem precisa de saber que as viagens aéreas têm custos ambientais significativos. O preço de mercado, internalizando os custos ambientais, leva a comportamentos ambientalmente adequados.

Em última análise, na minha opinião, é certo que a solução da questão das alterações climáticas passa por todos nós assumirmos uma postura de voluntarismo. Mas passa muito mais por políticas públicas coerentes e abrangentes que permitam dar os sinais de mercado que levem a que todos nós nos comportemos como se voluntaristas fôssemos, independentemente de o sermos ou não.

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