Vitrúvio revisto e envidraçado

Há quem viva tão mal com isto. Gente da introspecção, da metafísica e do pensamento elevado, mentes que possuem a ilusão de pairar acima das torres de alta tensão.

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Álvaro Domingues

A disposição dos templos depende da simetria, cujas normas devem ser escrupulosamente observadas pelos arquitectos. A simetria tem a sua origem na proporção, que em grego se denomina analogia. A proporção define-se como sendo a conveniência de medidas a partir de um módulo constante e calculado, e a correspondência entre as partes de uma obra e de toda a obra no seu conjunto. É impossível que um templo possua uma disposição correcta se carece de simetria e de proporção, como sucede com os membros ou partes do corpo de um homem bem formado.

O corpo humano foi formado pela natureza de tal forma que o rosto, desde o queixo até à parte mais alta da testa onde surgem as raízes do cabelo, meça uma décima parte da sua altura total. A palma da mão, desde o punho ao extremo do dedo médio, mede exactamente o mesmo; a cabeça, do queixo ao topo, mede uma oitava parte do mesmo corpo (...)

Por volta do ano de 1420, o Papa Martinho V reestabelece o papado em Roma, depois dos anos duros do Grande Cisma do Ocidente quando os papas e os antipapas se excomungavam mutuamente, se sucediam os concílios, as nomeações de cardeais e os jogos de poder sobre que reinado ou rei apoiava quem. Era necessário devolver a Roma a sua magnificência, rever e aumentar os símbolos e as mitologias da cidade de S. Pedro e dos imperadores.

As ruínas dos edifícios antigos causavam espanto pela sua dimensão, sumptuosidade, refinamento da execução, ou excelência dos materiais. Causavam também ódios ou indiferenças. Por isso, a sorte dessas veneráveis construções era variável e contraditória: umas vezes preservadas, convertidas em templos cristãos; outras, subtraídos de colunas, capitéis, pedras lavradas, estátuas...; outras ainda, destruídos por fúrias guerreiras ou evangelizadoras. A acção dos papas na Roma de quatrocentos foi fundamental para toda a cristandade europeia — a arquitectura e a escultura clássicas tornavam-se referenciais de monumentalidade e de prestígio. O período do Renascimento viria a consolidar esta magia classicizante.

Não é por isso necessário invocar o pós-moderno ou os seus muito nervosos críticos para explicar a escolha das colunas e do frontão de um templo clássico para marcar uma significação forte de um lugar e de um edifício dos tempos de hoje. É pura semiótica: convocar imagens conotadas, símbolos de monumentalidade, articular signos e pô-los a circular de um campo de referência a outros — do templo à casa comercial —, produzir uma dissonância com o todo de que essa parte é elemento de referência, fachada, limiar de entrada.

De proporções generosas e visibilidade acentuada por estar no topo de um percurso ascensional, o falso templo reluz no meio de tanta agitação de cabos que vai pelos ares e pela alta tensão que os percorre lá mais ao fundo. As imagens, como as palavras, revestem coisas inimagináveis, talvez tendencialmente infinitas. As imagens expõem, disponibilizam-se para o olhar distraído ou para uma observação mais demorada.

Muito gostava de ouvir Vitrúvio do longínquo século primeiro em que viveu. Não ia resistir à carga pesada da retórica de género que lhe desabaria em cima por causa do corpo do homem bem formado. Pobre Vitrúvio, que teria de rever tudo com o modelo do corpo da mulher, desde os cânones de beleza da obesidade ao extremo adelgaçamento das revistas de moda. Ele, que tão erradamente explicou as cariátides gregas, teria de explicar também outras questões delicadas acerca dos padrões de beleza e de perfeição de tudo o que não se considera bem formado, torto, anquilosado, ou esculpido à força de ginásio e de esteróides; mostrar-lhe-iam Rembrandt ou Rubens; senhoras de longas pernas, homens de perna curta e testa alta e outras infinitas medidas e proporções que dariam outros tantos tratados de arquitectura. O problema é o próprio tratado naquilo que contém de absolutizante, irrefutável e definitivamente assente.

Estou certo de que Vitrúvio teria ficado maravilhado com os grandes panos de vidro, com a transparência cristalina e com a leveza das estruturas metálicas, e todos os prodígios tectónicos do betão que lhe resolveriam as limitações dos espaçamentos entre colunas, a resistência das arquitraves e, no limite, a liberdade de espalhar colunas por onde quisesse, sem se preocupar em saber se elas de facto suportavam alguma ou nenhuma carga. Tudo artificioso, pensaria, os enganos, o sonho de qualquer humano em se libertar da tal natureza que o formou, como aquele entablamento em pedra que parece um traço flutuante sobre a parede-cortina transparente.

Há quem viva tão mal com isto, porém. Gente da introspecção, da metafísica e do pensamento elevado, mentes que possuem a ilusão de pairar acima das torres de alta tensão, pensamentos que tudo arrumam em códigos e prescrições, estética e moral como se tivessem a clareza e a elegância de uma fórmula geométrica, etc., etc., que abominam as coisas vulgares, a vida de todos os dias, os que nunca leram Heidegger ou sabe-se lá mais quem, relegados para a baixa cultura, o ordinário e o mau gosto. Azia.

Um edifício-montra é um edifício transparente como os de Mies van der Rohe (que coisas penso), excepto que não é da autoria de Mies nem apresenta as depurações formais do minimalismo, que é coisa que aqui parece não constituir tema pertinente. Pertinente e absolutamente necessário ao negócio é ser-se notado, destacar-se da concorrência (como os clientes de Mies).

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