Contra a SUVificação das cidades

Chegou o momento de discutirmos seriamente a redução drástica do número destes veículos, com um plano a médio-prazo que reduza a sua centralidade nas vidas das nossas comunidades.

Hesitei em relação ao título desta crónica. Não porque tenha dúvidas quanto à oposição à presença destas viaturas nas cidades mas sim porque em Portugal ainda recorremos ao aportuguesamento da marca “Jeep” para nos referirmos a este segmento automóvel. Contra a jipeficação das cidades poderia também ser o título escolhido. Optei pela denominação SUV por duas razões: porque seria injusto para com a marca que deu origem à palavra jipe e que está longe de ser a única responsável pela propagação destes veículos e, sobretudo, porque é a designação SUV que as próprias marcas têm utilizado nas suas infindáveis ações de marketing e publicidade que invadem os órgãos de comunicação social e o espaço público – arrisco até a dizer que na edição do PÚBLICO onde este texto está a ser publicado há pelo menos um anúncio a um dos SUV à venda no mercado.

Um SUV – “sport utility vehicle” (veículo utilitário desportivo) – é na base uma viatura adaptada aos terrenos não pavimentados, por norma com tração às quatro rodas e caracteriza-se pelas suas grandes dimensões quando comparado com os veículos citadinos. Num passado não muito longínquo, eram poucos os SUV nas cidades portuguesas e quase sempre conduzidos por amantes da condução fora das estradas sinalizadas ou então por quem deles se servia por razões profissionais. Nos últimos anos, porém, a situação tem vindo a mudar, estando a venda de SUV a crescer a um ritmo muito mais acelerado que os outros segmentos automóveis. São hoje muitos os veículos deste tipo a circular nas cidades, incluindo as portuguesas, muitos deles apenas em viagens intra-citadinas e de curtas distâncias. Mas associada a esta SUVificação das cidades estão muitos problemas que importa discutir.

Em primeiro lugar, a segurança dos peões e outros utilizadores das estradas, com os ciclistas à cabeça. Um SUV, pelas suas dimensões e robustez, aumenta o perigo de acidente e a gravidade das consequências do mesmo de pelo menos três modos. Desde logo, sobreviver ao impacto de um SUV é mais difícil, pelo seu peso e a sua altura, que sobreviver ao impacto de um veículo mais pequeno e mais leve. Outra razão deve-se à altura a que o condutor se senta e que faz com que a visibilidade seja reduzida, em particular no que diz respeito às crianças. Finalmente, a ideia de segurança que o condutor de um SUV sente faz com que possa tomar decisões mais arriscadas ou conduzir de um modo mais errático. Não é portanto de estranhar que um dos jornais norte-americanos de maior tiragem tenha anunciado recentemente um aumento do número de peões mortos, apontando para o aumento exponencial do número de SUVs como uma das causas.  

Em segundo lugar, os SUV são veículos que pura e simplesmente não estão feitos para circular no espaço urbano. Nem os veículos estão desenhados para as cidades, nem as cidades, já de si desenhadas para os veículos individuais, estão desenhadas para os SUV. Pensemos nas cidades portuguesas como Lisboa e Porto e em como os SUV, pela sua largura, têm não apenas dificuldade em circular como também reduzem ainda mais o espaço disponível para as outras formas de mobilidade. Pensemos ainda no estacionamento destes veículos que, como todos os outros veículos de transporte individual, se encontram parados a maior parte do dia, e que requerem maior área do espaço público.

Mas esta SUVificação das cidades revela um problema mais profundo: o afastamento cada vez mais acentuado das pessoas em relação ao espaço público. Já em 1973 André Gorz alertava para a “ideologia social do automóvel” que, entre outras coisas, implicava a crença ilusória de que os condutores podem ter todos os benefícios em detrimento de todos os outros utilizadores do espaço público. Esta SUVificação continua e aprofunda essa crença, criando ainda mais distância – simbólica e literalmente – entre os cidadãos-condutores e o espaço público que se quer partilhado. O contacto pessoal, a troca de olhares e de palavras, as discussões ou o simples estar-se no espaço público é substituído por uma simples passagem, sempre apressada, entre o local de trabalho e a residência.

E o que pode então ser feito? Desde logo, rejeitar a monopolização do espaço público por parte dos veículos individuais, em particular os SUV. Chegou o momento de discutirmos seriamente a redução drástica do número destes veículos, com um plano a médio-prazo que reduza a sua centralidade nas vidas das nossas comunidades. Mas este esforço tem de ser acompanhado por outras medidas estruturais: melhoria dos diferentes modos de transporte coletivo, aposta na mobilidade suave e modos de deslocação não poluentes e, não menos importante, um abrandamento do ritmo de vida coletivo. É que as cidades são de todas e de todos e não apenas daqueles que nelas circulam rodeados por algumas toneladas de metal e plástico.  

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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