O que fazer dos pobres?

A sua classe é a dos homens mais ricos de Portugal, o que suscita invejas sem classe, como a dos que lhe chamam merceeiro, apoucando assim o dono do Pingo Doce e os seus balcões, fazendo dele uma figura com mundividência de bairro e contas feitas em papel pardo, por muitos zeros que tenham as somas finais. Na semana passada, Alexandre Soares dos Santos mostrou não só que tem uma aguda consciência das classes, da sua e da dos que ele tutela, mas também que faz dessa consciência uma força revolucionária: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média”, disse ele, ao Observador, numa “entrevista de vida”, um género que no jargão jornalístico designa a recitação, pelo entrevistado, do seu curriculum vitae, perante um jornalista extasiado com tanta vida do interlocutor .

O entrevistado, por modéstia, diz “a gente”, mas é apenas uma maneira de dizer “nós, os líderes”. E ao dizê-lo tinha certamente em mente a pergunta que John Locke fez em 1697, numa exposição escrita que apresentou no Ministério do Comércio: “O que fazer dos pobres?”. Como resposta, o filósofo propunha algumas soluções plausíveis. A primeira, condição indispensável para a realização de todas as outras, consistia em “pôr os pobres a trabalhar”, retirá-los do vício e da ociosidade, o que limitaria desde logo a sua inclinação para o deboche. Mais de três séculos depois, a pergunta não perdeu pertinência e continua a ser formulada nas cúpulas, onde o imperativo é operare, fazer obra, sempre fazer: o que fazer então dos pobres, hoje? A resposta, agora, pinga mais doce: transformá-los obviamente em classe média, de acordo com o movimento inexorável da História, à escala planetária. Quem o diz não tem apenas consciência das classes, e não foi em rolos de papel pardo que leu que o conceito de classe estabelece uma ligação entre sociedade e natureza e organiza um sistema coerente da vida social; quem o diz tem também iluminações da psicologia social. E sabe que a classe média é uma criação (aliás, tardia; há mesmo quem diga que ela só foi inventada para alimentar a sociedade de consumo) e resulta de um processo de transformação que se pretende irreversível: ascende-se à classe média e nunca mais se quer voltar à origem. Mesmo que se desça nos critérios materiais, o ethos da mediania de classe ficou inculcado e não se apaga. Mas ficar lá para sempre também não basta, não traz a alegria que se esperava. A classe média tem a superstição de um sucesso que depois não existe de facto. E isso só engendra medos e discordâncias em relação ao ambiente social. No fundo, mesmo que não o admita nem o racionalize desta maneira, a classe média tem complexos de pobreza intelectual. E não tem nada de fascinante pertencer à classe média. Por isso é que não há tanta generosidade como parece, nem tanto progresso como insinua, neste homem rico do Pingo Doce que transforma a matéria-prima pobre em mercadoria medianamente enriquecida. Na verdade, nenhum pobre alguma vez disse que queria chegar à classe média. Os pobres, todos os pobres de todos os tempos e latitudes, o que dizem é que querem ser ricos, sem terem de passar pelas etapas medianas, medíocres, onde ficam sujeitos a um olhar que sempre os relativiza: ora são considerados ricos porque estão além do limiar dos pobres; ora são considerados pobres porque estão abaixo dos ricos. Esta classe média que era pobre antes de se tornar média, se mora na Bobadela não quer ir morar para os Olivais. Quer é instalar-se em Nova Iorque. Mas isto não percebe, ou não quer perceber, o homem que é dos mais ricos de Portugal, a quem se deve a transformação virtuosa dos seus pobres já não em pobrezinhos, como fazia outrora a classe abastada, mas em classe média. Ele faz questão de afirmar que tem nas suas mãos os comandos do ascensor social (ou diz-se antes elevador?), deixa bem claro que essa deslocação vertical é por ele controlada e tutelada. Sem ele, sem “a gente”, dos pobres nada feito. Que assim seja, é motivo de regozijo e não justifica mais exigências. Para se sentir privilegiada, menos exigente e menos fatigada, a classe média só tem de visitar todos os dias os pobres na televisão.

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