Infarmed: olhar o passado a pensar no futuro

O Infarmed terá de ter condições para renovar, rejuvenescer e alargar o leque de peritos nacionais.

Com a criação do SNS, registaram-se grandes transformações ao nível do financiamento e acesso aos medicamentos e tecnologias de saúde. Até aí só cerca de 50% da população tinha acesso à saúde e às tecnologias de saúde. O SNS induziu o desenvolvimento económico de várias atividades produtivas e de prestação de serviços, consequentes à criação de um mercado de produtos e serviços comparável com o que se passava noutros países europeus. Desenvolveram-se ainda mecanismos de regulação e controlo que garantiram ao cidadão e profissionais a qualidade e segurança, bem como a acessibilidade a esses produtos.

A criação do Infarmed, há 25 anos, resultou de impulsos internos e externos ao país. A nível externo, foi aprovado, em 1993, um regulamento europeu e respetivas diretivas que formataram o novo sistema europeu de avaliação e supervisão do medicamento e criaram a Agência Europeia do Medicamento (AEM). Esta decisão histórica foi tomada em Lisboa, em reunião no Cento Cultural de Belém, após alguns anos de discussão entre os Estados-membros da União Europeia, de várias propostas da Comissão Europeia. A nível interno, a necessidade de se garantir a qualidade, eficácia e segurança dos novos medicamentos que acediam ao crescente mercado e ainda controlar a crescente despesa através da avaliação da custo-efetividade, exigiam a criação de estruturas de avaliação e controlo da qualidade modernas e de nível europeu.

Foi nessa conjuntura que se criou, em 1993, o Infarmed. Em 1995 arranca a AEM sediada em Londres, que mais não é que uma “plataforma logística de conhecimento”, onde os peritos de diversas áreas científicas de todos os Estados-membros, através de diversas comissões científicas, avaliam e decidem a entrada no mercado dos medicamentos. O desenvolvimento estratégico do Infarmed baseou-se nessa nova realidade que exigia uma participação ativa de numerosos peritos portugueses nas novas estruturas da AEM, sob pena de ficarmos afastados do processo de decisão europeu na área do medicamento. Tal aconteceu com a “mobilização” de cerca de duas centenas de peritos das universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, de médicos e farmacêuticos de muitos hospitais do SNS e de alguns economistas ligados à área da Saúde.

A liderança sustentada durante sete anos por uma equipa homogénea, não dependente dos ciclos políticos, e a grande motivação do pessoal que integrou e integra o Infarmed foram fatores determinantes para o sucesso. O Infarmed ganhou o respeito e confiança da população e posicionou-se a nível europeu como um dos institutos ou agências nacionais com maior intervenção dos seus peritos no processo de avaliação europeu. Nas dezenas de comités científicos da AEM participam peritos portugueses de todo o país. O vice-presidente da principal estrutura científica de avaliação da AEM, o Comité de Avaliação de Medicamentos de Uso Humano, é um jovem e brilhante professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, que se candidatou por iniciativa própria e foi escolhido. O Infarmed participa ainda ativamente no sistema europeu de inspeções a laboratórios em todos os países do mundo. Através do seu moderno laboratório, efetua análises para o sistema que garante a qualidade dos medicamentos europeus e de outras organizações internacionais, como é o caso da OMS.

O Infarmed terá de ter condições para renovar, rejuvenescer e alargar o leque de peritos nacionais. Por falta de condições remuneratórias adequadas e instabilidade dos contratos, a maioria dos jovens técnicos e cientistas que nos últimos anos têm sido admitidos no Infarmed mantém-se poucos anos na instituição. O Infarmed tem sido uma excelente escola de formação de quadros para centenas de jovens que são posteriormente recrutados para o setor privado, nomeadamente pela Indústria Farmacêutica. Têm de ser desenvolvidas novas competências científicas em algumas áreas, sob pena de corrermos os mesmos riscos de marginalização que existiam na data da sua criação, há 25 anos. As novas fases de construção europeia na área do medicamento criam novos desafios e colocam as questões do medicamento num novo patamar que tem de ter em conta o desenvolvimento da investigação de novas soluções terapêuticas na Europa. As questões da transparência nos processos de decisão, acesso à informação em que se baseiam os processos de avaliação técnico-científica e o direito ao contraditório são hoje elementos fundamentais para que os cidadãos e profissionais confiem no sistema regulador.

Não basta colocar medicamentos seguros e eficazes no mercado, é necessário assegurar que a sua prescrição seja adequada às indicações terapêuticas aprovadas e a sua utilização seja segura e conte com a aderência dos doentes aos tratamentos. O desenvolvimento de estudos sobre a utilização dos medicamentos e o seguimento farmacoterapêutico dos doentes tem de ser uma prioridade dos sistemas de saúde. Estudos credíveis provam que, muitas vezes, os custos associados à mortalidade e morbilidade, por incorreta utilização dos medicamentos, são superiores aos custos da terapêutica instituída. Não é socialmente e economicamente aceitável que novas tecnologias, que implicaram enormes investimentos na investigação e desenvolvimento, sejam mal utilizadas sem benefício para o doente, envolvam riscos desnecessários e constituam desperdício económico para a sociedade.

A reorganização do sistema de avaliação das tecnologias de saúde, nomeadamente medicamentos e dispositivos médicos, é uma prioridade e implicará uma restruturação do Infarmed, atribuindo-lhe um verdadeiro estatuto de Entidade Reguladora (que só tem no nome) e autonomizando algumas fases de avaliação que serão incompatíveis com o estatuto de regulador. Temos de reforçar o papel da autoridade reguladora com a autonomia financeira resultante da sua não dependência do Orçamento do Estado. Os procedimentos internos têm de ser transparentes, públicos e auditáveis, com massa crítica independente e credível a nível científico, com estruturas flexíveis e adequadas às mudanças permanentes e com lideranças não condicionadas pelos curtos ciclos políticos.

Estes desafios, a nosso ver, têm de ser vencidos a curto prazo. Se isso não acontecer estarão em causa os resultados obtidos pelo árduo trabalho de centenas de peritos e cientistas de todo o país, que nos últimos 25 anos dedicaram grande parte da sua vida à instituição.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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