As mulheres da fábrica

A última vez que me mascarei foi, julgo, no 5.º ano. Era um fato bonito de palhaço pobre, que fora ainda feito pelas mulheres da fábrica. Agora, só sinto que estou mascarada quando, por obrigação, tenho de me maquilhar.

Na minha zona havia uma fábrica. Era quase na minha rua, mas não exactamente. Ficava um pouco mais ao lado, um pouco mais abaixo. Provavelmente, havia mais, mas ali tão perto, aquela era a única. Por isso era “a” fábrica. O local para onde se encaminhavam as vizinhas, primas e tias, algumas mulheres que chegavam no autocarro com paragem mesmo colada à porta da minha casa. Essa fábrica, da época áurea do têxtil em Portugal, era, nesse tempo, o expoente máximo do Carnaval para mim. Acho mesmo que ele, enquanto celebração, acabou quando a fábrica fechou. Nunca mais lhe consegui achar grande graça.

Nunca fui muito de máscaras. Podia usar agora uma daquelas frases feitas de profundidade relativa e dizer algo como “já chega as que carregamos no dia-a-dia”, o que até nem é mentira, mas acho que prefiro recorrer a outra expressão, que a minha avó usava, amiúde, geralmente acompanhada por um abanar de cabeça, quando estava a criticar o comportamento de alguém: “Cada um é para o que nasce.” E, eu, claramente, não nasci para andar mascarada.

Prova disso é que a fantasia que, até hoje, me deixou mais feliz, foi um vestido de uma das minhas irmãs. Era lindo (ou assim permaneceu na minha memória), num tecido leve de ramagens verdes, mangas compridas e saia rodada. Quem me dera tê-lo hoje para o poder continuar a usar. O Carnaval em que mo deixaram vestir foi o que a minha memória registou como o melhor de todos. A alternativa, convenhamos, não é grande concorrente: num daqueles repentes que me era bastante característico na infância (acho que me livrei disso entretanto), depois de insistir dias a fio que não queria ir mascarada para a escola, acordei no dia do desfile sem vontade de ser a única a aparecer com roupa normal e o resultado foi enfiarem-me num conjunto de calções e casaco cor de laranja, um daqueles fatos inenarráveis dos anos 80, porem-me um laço verde na cabeça e dizerem-me que ia mascarada de cenoura. E eu já não me lembro se fui ou se olhando para aquela figura no espelho, desisti de tudo logo ali. Mas acho que fui. Devo ter ido.

Foto
Paulo Pimenta

Não vale a pena insistir, porque já perceberam: o Carnaval não me entusiasma. Mas, no tempo do vestido de ramagens verdes e da máscara de cenoura, havia uma razão que me fazia ansiar pela data. Que fazia toda a rua ansiar pela data, levando a que a vizinhança se amontoasse à porta de casa para espreitar o que aí vinha. Era o dia do desfile das mulheres da fábrica.

Porque elas, sim, empenhavam-se no Carnaval. E com tantos restos de tecidos e máquinas de costura à mão, divertiam-se a criar fatos para cortejos hilariantes, com que brindavam a vizinhança. Na segunda-feira antes do dia de Carnaval, quando a pausa do almoço chegava, enfiavam-se nas suas criações, pegavam no que houvesse à mão para fazer barulho, e saíam para a rua, percorrendo toda a zona envolvente, com muitas gargalhadas à mistura. O cortejo tinha sempre um tema, nada de fantasias desgarradas sem ligação entre si. Aquilo era a sério. E no ano em que a telenovela Roque Santeiro ocupava as noites da maioria dos portugueses que tinham televisão, nós tivemos direito a todo um rol de personagens a passar-nos à porta, com o Sinhozinho Malta e a Viúva Porcina à cabeça.

Aquelas mulheres divertiam-se. Traziam um riso contagiante para a pasmaceira dos dias. Construíam os seus fatos de raiz, motivavam a vizinhança a espreitá-las e aplaudi-las, a rir-se com elas. Para a criança que eu era, tudo aquilo era um fascinante mundo virado do avesso. O mundo em que os adultos faziam palermices e se riam com isso. Em que se podia ser ridículo e ser, ainda assim, admirado (mesmo que esses conceitos não estivessem, de certeza, presentes no meu cérebro). Era só tudo demasiado divertido e diferente e maravilhoso.

Essa era também a altura em que uns poucos homens da freguesia colocavam máscaras que lhe escondiam a cara, vestiam-se da cabeça aos pés de mulheres, e passeavam de braço dado, em frente aos vizinhos, que os apontavam e se riam, tentando adivinhar quem eram, o que eles combatiam não abrindo a boca. Era outra patetice. E era divertido.

Depois, a fábrica fechou. E os homens que se mascaravam de mulheres devem ter morrido, porque também deixaram de passear-se pelas ruas, de braço dado e cabelos escondidos por lenços atados debaixo do queixo. O Carnaval foi-se embora da rua, naquilo que tinha de mais genuíno, para ser substituído por miúdos vestidos de Zorro e Sevilhanas ou por qualquer outra personagem que estivesse na moda naquele ano. Massificou-se e perdeu a graça.

A última vez que me mascarei foi, julgo, no 5.º ano. Era um fato bonito de palhaço pobre, que fora ainda feito pelas mulheres da fábrica. Agora, só sinto que estou mascarada quando, por obrigação, tenho de me maquilhar (ou alguém me maquilha, deixem-me ser honesta, porque eu não saberia o que fazer com um pincel e uma sombra para os olhos). Os amigos gostam, mas eu fico sempre a olhar para aquela pessoa no espelho e a achar que não sou eu. E, confesso-vos, não acho muita graça.

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