Um dilema chamado Kosovo

Dilema é a palavra que melhor descreveria o estado do Kosovo. O país conseguiu a sua bandeira, o seu nome, o seu parlamento. Moderniza-se e reconstrói-se com uma vontade atroz. Mas não conseguiu ainda encontrar-se enquanto identidade cultural coesa.

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Tomás Guerreiro

É com imensa vontade que se leva a vida no Kosovo. As gentes deste novo país, independente da Sérvia desde 17 Fevereiro de 2008, para além de serem extremamente jovens – 50% da população tem menos de 30 anos –, amam a vida, na verdadeira acepção da palavra. Os jovens do Kosovo estão imbuídos num espírito cultural e intelectual totalmente diferente do resto dos Balcãs. Explicavam-me muitas vezes em inglês, durante o tempo que passei no país, que no Kosovo "the people are not open minded", o que é verdade. No entanto este reconhecimento da sua própria condição diz muito sobre as suas ansiedades para a construção de uma nação.

O Kosovo constrói-se com um fervor incomensurável. Cruzar a fronteira entre o Kosovo e a Macedónia num pequeno furgão, onde se contam umas 15 pessoas, provoca ao visitante um paradoxo olhar entre o presente e o futuro. Se numa estreita e sinuosa estrada, pouco recomendada para quem sofre de tonturas, se desenrola a viagem até à capital, pelo vidro do cansado transporte vislumbra-se a construção de uma imensa e larga auto-estrada, que demonstra bem, a título de metáfora, a vontade do Kosovo. Pristina, apesar de pobre, é uma cidade moderna, jovem e que se reconstrói de olhos postos no futuro.

A mescla da população nos bares do país é também ela fascinante: não houve ainda tempo para grandes declives sociais, nem estratificação de classes. Quero com isto dizer que é comum um qualquer ministro partilhar o balcão da taberna com o mecânico ou o barbeiro sem grande motivo de alarme ou notoriedade.

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Considerando o actual contexto político, atrevo-me a inferir que o Kosovo só não pertence à Albânia porque a Sérvia nunca o permitiria. Como prova disso, e para além de ambos os países (Kosovo e Albânia) partilharem a mesma língua, uma esmagadora maioria da população do Kosovo nasceu na Albânia e/ou possui ascendência albanesa. Mais flagrante ainda é o facto de as duas bandeiras adejarem em uníssono por todo o território kosovar.

Numa conversa de balcão em Pristina, contava-me o barman Genci: "O Kosovo e a Albânia são o mesmo, mas com nomes diferentes. Nós somos o Kosovo, eles são a Albânia."

A admiração existente entre a população do Kosovo e o lifestyle estadunidense é visível. É notória devido à estátua de Bill Clinton e aos imensos cartazes alusivos à sua pessoa, é notória devido ao facto do seu principal monumento ser um escrito em inglês, é notória na forma de estar das pessoas e até no modo de reconstrução do país: abundam os luminosos letreiros da Coca-Cola e os intermináveis arranha-céus, sem que exista uma real necessidade de elevar os edifícios dessa forma. Toda gente fala inglês e como me contava Genci: "Entre nós [kosovares] fazemos muitas vezes a piada de que o Kosovo é o 51.º estado."

É, no entanto, esta admiração para com os EUA e a sua proximidade para com a Albânia que transforma o Kosovo num paradoxo estrutural: se, por um lado, 11 anos depois do culminar da guerra e consequente independência, o Kosovo se moderniza a um ritmo avassalador e com uma vontade notória, por outro a população e o país encontram-se desprovidos de qualquer tipo de identidade ou referência cultural genuína o suficiente para o caracterizar como povo, nação ou país. Facto este que levanta uma questão muito mais profunda do que o complexo Kosovo: o que é um povo, um país ou uma nação sem um vínculo cultural?

Caso o Kosovo se queira afirmar como um Estado deve em primeiro lugar questionar-se "quem somos nós?". Uma pergunta para a qual me parece não haver resposta… Ou, pior ainda, a resposta poderá acicatar feridas que ainda não sararam.

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Tomás Guerreiro

Dilema é a palavra que melhor descreveria o estado do Kosovo. O país conseguiu a sua bandeira, o seu nome, o seu parlamento. Moderniza-se e reconstrói-se com uma vontade atroz. Mas não conseguiu ainda, e no entanto, encontrar-se enquanto identidade cultural coesa, sendo a memória da guerra o único elo de ligação entre o seu povo.

É comum escutar-se por entre conversas nos Balcãs frases como "um fósforo é tudo o que os Balcãs precisam", mas no caso do Kosovo sinto-me no dever de citar um dos taxistas que me transportou: "Good things take time, bad things come by night." 

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