Olhando e ouvindo

O candidato que justifica o interesse privado com o bem-comum. Os hipócritas bem-falantes que pervertem todos os valores em que dizem acreditar em nome de um altruísmo insondável. A maleabilidade pegajosa e mal-cheirosa da política. As elites e as suas tribos de serventes, meticulosamente organizadas em hierarquias prussianas. Cada qual tem de esperar pela sua vez para ascender ao além da prosperidade material. A pobre a vasculhar o lixo, o marido que se aproxima, indignado e furioso, tresandando a álcool. As Mães em fila pela rua a levar os filhos e as filhas para a escola, como leoas a ensinar os filhotes a caçar. Os rapazes que calçam sempre os mesmos ténis, com caras destituídas de futuro que dizem: tirem-me daqui, quero ir para a América!

Os jornais folheados pelos calos de quem trabalha. Quem morreu e quem está vivo? Gente importante, esta. Este escreve para o jornal. Julga-se importante. A matina do trabalhador satisfeito por ter acordado. A aguardente, anti-depressivo eficiente do proletariado esquecido. O cigarro como sobremesa. O atum como jantar. A conduta do pão. O mastigar raivoso. Todas as percepções são únicas mas o todo que as une é inextricável e indecomponível. Erupções de singularidades numa tela encarcerada pelo bom senso. Fragmentos e unidades, condensações e dissipações, movimentos e paragens.

Nada escapa ao olhar e ao ouvir do errante. A chuva cai, a Mãe berra, a criança regressa ao seio do lar. Tudo obedece a uma lei caótica sem dono. Tudo nasce, tudo morre, tudo assenta, tudo se move, tudo desaparece. Ninguém permanece igual a si próprio com o desfilar do tempo. Os padres pós-modernos, com caras de malucos, são chamados a intervir na sociedade pelo poder político. Vão definir uma geração inteira de rebeldes para as farmacêuticas. Transformarão injustiças sociais em maleitas psicológicas, um truque prodigioso e muito lucrativo. Malditos herdeiros do confessional, mercenários da infelicidade alheia.

Os verdadeiros padres estão prestes a pedir subsídio de desemprego. O Vaticano está moralmente falido. O Papa está rodeado de inimigos que abusaram da confiança alheia. As seitas percorrem as ruas avidamente tentando explorar o mercado dos desiludidos. O povo odeia-as, com toda a razão. O transcendente fechou para obras…infindáveis. Ninguém acredita em coisa alguma. Somos todos vagabundos da incerteza. O único transcendente que resta é a força de vontade, inelutável e sincera. Sobrevivência. Tudo foi reduzido a uma cintila que arde timidamente. A feminista que adoptou as insípidas boas-maneiras do machista benevolente e condescendente. Ela já não pretende ascender ao universalismo da cidadania. Prefere o tribalismo marcial do género e as dúbias seduções da manada identitária. Mais um bem-comum que foi pervertido em nome de uma militância fervorosa. As Mães esquecer-se-ão dos filhos e as filhas dos Pais. As avós e os avôs ainda estão vivas/os, felizmente. Nem tudo está perdido. Olhando e ouvindo, o errante percorre o sentir do Outro. Vagabundo solitário, síntese improvável.       

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