Questões de grafologia

António Poppe é um grafologista porque a sua escrita coloca a descoberto as muitas dinâmicas poéticas da linguagem.

Um movimento constante em torno de múltiplos centros, de planetas e de lugares
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Um movimento constante em torno de múltiplos centros, de planetas e de lugares Bruno Lopes
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Uma órbita tem um alcance semântico e pode querer dizer a trajectória elíptica e regular descrita por um corpo celeste em torno do seu centro gravitacional, por exemplo os planetas que gravitam à volta do sol. Mas órbita também diz respeito ao movimento do electrão em torno do núcleo de um átomo e é igualmente a cavidade óssea que nós, seres humanos, possuímos na face e onde fica alojado o  globo ocular. Depois pode querer dizer aquele estado alheado da realidade ou distraído. Entre outros sentidos figurados e literais.

Esta amplitude semântica é conveniente a António Poppe (n. Lisboa, 1968) porque o seu trabalho é um movimento constante em torno de múltiplos centros, de planetas e de lugares: o desenho, a poesia, a performance, a meditação, a instalação e mesmo a pintura. Uns são próximos, outros longínquos, uns internos, outros externos, mas independentemente da sua localização específica, o que importa é o movimento que o seu trabalho põe em acção.

Caracteriza-o uma geografia incerta porque não só os desenhos, poemas, grafemas, performances, gestos, não se deixam aprisionar por nenhum tipo de disciplina — não são desenhos, mas são desenho, não são poesia, mas são poesia... —, mas também porque as obras que mostra nunca estão completas: cada obra é um ser vivo, um elemento dinâmico cuja forma está em permanente actualização e transformação. Os seus desenhos, muitas vezes enormes colagens onde junta linhas, letras, grafemas, fotografias que parecem ter sido roubados ao fundo do mar, contêm em si sempre possibilidades de novas composições e habitam um espaço provisório.

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Pode dizer-se estar em causa um dinamismo morfológico que provoca no espectador a vertigem de quem se vê lançado numa viagem caleidoscópica: imagens que se geram a partir umas das outras, que se diluem, desaparecem e depois retornam e se repetem, mas que nunca são as mesmas. Imagens onde o céu, as estrelas e os astros coincidem num mesmo lugar com as coisas que vivem no fundo do mar ou no centro da terra. E onde divindades, deuses, musas e seres humanos vivem em permanente comunidade.

A ideia de ligação, prolongamento e contaminação é tão decisiva no trabalho deste artista que não é possível perceber onde começa um trabalho e acaba o seguinte de tal forma tudo está unido: uma forma contém e leva à seguinte e cada desenho prolonga naturalmente um outro. Trata-se de uma espécie de lei morfológica como a descrita por Goethe em A Metamorfose das Plantas: há uma afinidade secreta, diz-nos Goethe, entre as diferentes partes da planta; folhas, cálice, corola, estames desenvolvem-se sucessivamente e a partir umas das outras, mas em todas as metamorfoses há algo de idêntico que permanece e não se perde.

Esta aproximação ao mundo natural, tão decisiva no trabalho deste artista, também nos serve para mostrar como os trabalhos de Poppe retomam a poderosa ideia gotheana da afinidade, proximidade e das possíveis passagens entre uma forma natural e uma forma artística. Não se trata de uma simples comparação formal, mas compreender que entre a natureza e a arte se dá uma passagem: a arte não é ou imita a natureza, mas prolonga-a de um modo inesperado.

São estas passagens que os desenhos de Poppe mostram de forma insistente. E falamos aqui em desenhos à falta de melhor palavra para nomear as obras do artista. Seria melhor dizer que são mandalas evocando esse objecto mágico que representa a totalidade das forças que formam o universo. Uma representação feita com o objecto de auxiliar a mente na tarefa da concentração e do foco para, assim, poder entrar em estado de meditação. É conhecida a importância do seu uso nas tradições budistas, hindus, yoguis, mas no caso de Poppe esta associação tem a forma de uma exigência: que a arte seja mágica, totémica e o artista um xamã. Não se trata de um revivalismo tardio das lições de Beuys, mas da inscrição dos seus trabalhos numa outra esfera das actividades humanas e em que a arte não é só arte, mas um caminho de acesso ao mundo.

Nesta exposição, onde pela primeira vez se reúnem trabalhos tão distantes cronologicamente (falta o excepcional vídeo performático Man sees horse de 2004 que  ajuda a compreender o modo como imagem, palavra dita voz, corpo, movimento pertencem ao mesmo plano artístico e metafísico), não só fica claro o lugar excepcional que as obras devem ocupar, mas também o modo como os seus trabalhos, e a sua magia, são tentativas de fixar uma caligrafia inédita. Como se o artista, distanciando-se de qualquer tipografia ou outra técnica reprodutiva de imagens e linguagem, tivesse como seu grande propósito inventar um alfabeto capaz de dizer todo o dinamismo morfológico das imagens e das palavras. Neste sentido, António Poppe é um grafologista porque a sua escrita (aqui num sentido amplo de modo a poder incluir imagens, rabiscos, palavras ditas e sons inarticulados) coloca a descoberto as muitas dinâmicas poéticas da linguagem.

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