Pintar com a luz

Na sua pintura, Isabel Simões materializa o movimento da luz sobre as coisas.

A referência ao real é incontestável e, no entanto, elusiva
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A referência ao real é incontestável e, no entanto, elusiva BRUNO LOPES
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BRUNO LOPES

Quem, sob a claridade do dia, visitar Humor, a mais recente exposição de Isabel Simões, pode não reparar numa série de quadrinhos intitulados Ecrãs. Colocados no interior da vitrine da Galeria Bruno Múrias. Quase no topo da superfície, passam despercebidos. Do interior, contudo, revelam-se, iluminam-se. São diapositivos que, banhados pelos raios solares, revindicam o palco da sua aparição. Cada um contém uma imagem de coisas distintas: objectos, plantas, lugares, superfícies que a artista registou fotograficamente. Imagens que só existem quando o espectador, atraído pelo brilho que emitem, levanta o olhar. A uma distância, num intervalo: contidas pelos slides, são, também, objectos de um processo de trabalho, que se declina, que se expande nas paredes, em pinturas. A sua autonomia é, portanto, esquiva, ambígua, tímida.

Com a fotografia, a artista viu, admirou-se sobre o que viu, tomou um ponto de vista, compôs, atenta, sensível à reflexão da luz nas cores, nas formas, nos volumes, nas coisas. E pintou a partir dessas imagens, observando-as. As pinturas remetem para algo que lhes é exterior (o mundo), sem deixarem de ser pintura. Estão lá as pinceladas, a densidade epidérmica e fluída da tinta, a força cheia, simples e suave das cores – como não reparar no azul de Projecção ou nas tonalidades de amarelo, laranja e vermelho que contornam a sombra de Eclipse? Uma maciez, uma lisura, eis o que, colhendo a luz da fotografia, esta pintura sugere. Veja-se a série Meteorologia, em que se contemplam as traseiras de um prédio, com as suas janelas, escadas, vasos de plantas, andaimes. A referência ao real (um real que é o da vida da artista, na sua actividade solitária e privada) é incontestável e, no entanto, elusiva. O que se vê é, também, uma composição vibrante de linhas, de cores, de manchas,  de atmosferas em que o azul do céu se torna água ou chão, em que o exterior se torna interior, em que as coisas surgem viradas, literalmente, do avesso.

Isabel Simões permite-se e permite-nos esse recuo face à representação, para que se instale o gozo e a alegria da percepção das cores e das formas, sentimentos semelhantes aos que o narrador de Em Busca do Tempo Perdido exprime quando descreve a pintura do sol sobre as gaivotas no mar da imaginária Balbec.  Se a arte nos deixa reconhecer contornos, traços, volumes, espaços, coisas, é para que, diante deles, nos possamos surpreender com a transfiguração operada pela pintura, pelos gestos de pintar e colocar no espaço as imagens que desse trabalho nasceram. Conjunto de variações independentes de cromatismos, de impressões, Meteorologia pode ser concebida não apenas como uma série de pinturas, mas de objectos sobre os quais alguém solidificou, materializou o movimento da luz sobre as coisas.

Entre a pintura e o seu princípio (o que Isabel Simões viu e guardou com a fotografia), estão aberturas, entradas, fendas das quais o espectador se abeira. Note-se, por exemplo, a única tela que, encostada sobre a parede, toca o chão, Teatro de sombras: o negro da sombra estende-se não apenas ao soalho de uma sala (representado), diminuindo a sua luminosidade, mas também ao limite da tela, antes de ser contido pela moldura. O interior da pintura permanece fechado, mas não sem uma tensão com o espaço físico em que se movimenta o espectador, com o seu corpo.

Também entre tipos de imagens, as fronteiras ameaçam dissolver-se.  Certas pinturas, parecem, por instantes, imagens fotográficas antes de a visão, concentrada na superfície pictórica, vir desfazer o equívoco (como se por aqui permanecesse outra sombra, a da fotografia). Outra vezes, o reconhecimento tarda ou simplesmente fica suspenso (como em Eclipse ou Contorno do ar) e lentamente, vai sendo substituído pelo encantamento que a experiência pictórica por si só proporciona. Em “Projecção” imobiliza-se o bruxulear da sombra sobre o canto de uma porta ou talvez de uma janela. Sombra de uma planta que se desdobra, que se parte, pelo pincel, em três outras sombras sobre o azul, o branco e bege. Um teatro de cores banhado por uma luz que a artista reproduziu e viu reproduzida e na qual a contemplação e o desejo de entrar, instigado pelo efeito de trompe-l’oeil, se confundem. Isabel Simões tem uma predilecção por espaços, sítios, coisas, objectos, entradas, janelas, passagens. Fornecem-lhes os motivos com os quais constrói um universo visual e formal ao qual traz o espectador entre o reconhecimento e o puro deleite com a luz e a cor, de um modo que se torna físico, háptico sem deixar de ser óptico. Veja-se Contorno de Ar, em que a vontade de dizermos o que representa (uma paisagem?) soçobra face à sua presença material, face à incandescência que toma conta da superfície. Uma pintura atravessada pela claridade como as imagens de Ecrãs que, chegada à noite, são iluminadas pela electricidade da galeria.

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