Uma vida sem disciplina

Como antigamente, punha-se no arrabalde aquilo que era indesejável: leprosos, gente de má vida, pássaros de arribação, desclassificados.

Foto
Álvaro Domingues

Casinhas mal construídas, barracos de madeira, armazéns onde se misturam bem ou mal os materiais mais imprevistos, domínio dos pobres diabos que oscilam nos turbilhões de uma vida sem disciplina, eis o subúrbio! A sua fealdade e tristeza são a vergonha da cidade que ele circunda. A sua miséria, que obriga a malbaratar o dinheiro público sem a contrapartida de recursos fiscais suficientes, é uma carga sufocante para а colectividade. Os subúrbios são a sórdida antecâmara das cidades: enganchados às grandes vias de acesso pelas suas ruelas, eles tornam a circulação perigosa; vistos de avião, expõem aos olhos menos avisados à desordem e à incoerência da sua distribuição; cortados por ferrovias, eles são, para o viajante atraído pela reputação da cidade, uma penosa desilusão! (1)

A Carta de Atenas, assim conhecida, é o manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitectura Moderna, Atenas, 1933. Estava lá a fina flor da arquitectura internacional; ia começar um mundo novo e o outro via-se de cima como os deuses, os pára-quedistas e os satélites.

Tinha já muitos anos esta geografia estranha que, ao invés de actualizar o conhecimento sobre os processos de urbanização, partia o assunto em duas ocorrências: a cidade e o subúrbio. A primeira tinha só coisas boas, o melhor de cada civilização, as grandes obras. O segundo era o bode expiatório para tudo aquilo que pudesse ameaçar a harmonia eterna da tal “cidade” e por isso tinha outro nome. Havia uma excepção quando se tratava de luxuosas residências de quem as podia ter, claro: todo o requinte e conforto na pura aragem dos campos, largas paisagens sem moscas, esforço e pés nas estrumeiras — era a Cidade Jardim e não Subúrbio Jardim.

Os matadouros, os depósitos, os esgotos, o lixo, indústrias a fumegar, os armazéns, toda a tralha ferroviária que não fosse a imponente estação central, as casas dos pobres e outros monos que, pelos vistos, não teriam nada que ver com a cidade, sobretudo com a sua reputação, como reza a ladainha citada. Como antigamente, punha-se no arrabalde aquilo que era indesejável: leprosos, gente de má vida, pássaros de arribação, desclassificados. A muralha era à volta da cidade e não o contrário.

É estranho que esta ideia prevaleça. Há que tempos que as muralhas se foram; há que tempos que a única geometria do crescimento urbano deixou de ser a sequência de anéis “à volta” da cidade (no fim, o “campo”); perde-se a conta a milhões de quilómetros quadrados por esse mundo onde a urbanização toma forma de mil maneiras: aeroportos, favelas, centros empresariais, fábricas gigantescas, casas de todos os feitios e tamanhos, estradas e auto-estradas, bairros elegantíssimos, depósitos de pneus, universidades, centrais nucleares, oficinas e toda a lista infindável das edificações e da tralha dos humanos.

Era muito prático ter uma muralha como quem tem um caixilho e aí enquadrar perfeitamente a cidade — livre de nódoas, de preferência, porque nos habituaram àquela ideia de que as cidades eram o que de mais sofisticado os humanos tinham inventado um pouco antes ou depois de saberem escrever, tendo também aí começado a construir as suas proezas arquitectónicas para que durassem.

Agora é infinitamente mais o que está fora do caixilho do que o que está dentro, aliás, perdeu-se o caixilho; por todo o lado, agrupa-se e dispersa-se a geografia das actividades e do emprego, multiplicam-se polaridades, origens, destinos, vivências e formas urbanas.

Contudo, a fantasia da cidade perdura como modelo ideal para toda esta variedade e, por paradoxo, aquilo que foi a única forma de urbanização no tempo longo ganhou uma sobrevida, sacralizou-se e, como que soltando-se das suas condições sociais e históricas de produção, fixou-se em lugares e, sobretudo, em cenários e imagens. Quanto mais distinguida, mais cobiçada, mais valorizada; um filtro por onde só passam coisas distintas. Quem puder paga, quem não pode mude-se.

O resto é o subúrbio, a periferia, a área urbana, a coisa desacertada com muitas cores e movimentos por todo o lado, automóveis, arganões, unicórnios, fumaça; antiguidades nem vê-las; nem avenidas; rotundas em vez de praças — tudo banal, igual, sem uma única fachada em gótico flamejante.

Vamos à cidade como quem vai a uma disneylândia. Se for para voar, já não vamos à cidade, vamos ao aeroporto; para ver navios, ao porto; a electricidade vem das turbinas; a água dos canos, sabe-se lá de que remotas albufeiras; podemos fazer largos quilómetros de auto-estrada ou de caminho-de-ferro, ir ao cinema, ao centro comercial, trabalhar onde houver trabalho, ir à escola se for caso disso ou ir para casa. A questão é que o urbano não é um todo como a cidade (era), um contentor, um lugar; o urbano é uma esterroada de coisas, uma agitação.

Muito mau é aquele sistema que decalca o ovo estrelado: de manhã vai tudo para o centro — a dita cidade — onde a maior parte das actividades, do emprego e das trotinetes se aglomeram; no final do dia, vai tudo para casa, pobres diabos que oscilam nos turbilhões.

Estranha forma de vida, diria Amália.

(1) — Carta de Atenas, do IV Congresso Internacional de Arquitectura Moderna, ponto n.º 22, 1933

Sugerir correcção
Ler 5 comentários