Sociedade em rede

Quando as cidades se continham dentro de muralhas, uma boa parte da dificuldade estava resolvida: a cidade era dentro.

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Álvaro Domingues

 (…) o Neolítico ou a Revolução Agrícola, bem como o desenvolvimento posterior da escrita, da arquitectura monumental, do Estado e, seguramente, de todos os pré-requisitos da própria civilização, podem ser mais bem compreendidos como tendo surgido após o aparecimento das cidades e não o contrário. (…) Não foi necessário um excedente agrícola para a criação de cidades, foram as cidades que foram necessárias para a criação de um excedente agrícola. (1)

É muito difícil saber-se ao certo o que é uma cidade. Quando as cidades se continham dentro de muralhas, uma boa parte da dificuldade estava resolvida: a cidade era dentro. Qualquer outra coisa era fora de portas, o arrabalde, o campo, os montes ou o mar oceano. Toda a urbanização era cidade.

Não se sabe, no entanto, quando é que surgiu a primeira cidade. Teria de ter já passado o tempo em que os humanos deambulavam em bandos à procura de sustento, caçando e recolhendo o que lhes aparecesse. Terão, entretanto, aprendido a domesticar animais e a cultivar plantas, a produzir artefactos e a organizarem-se em conformidade com uma vida em conjunto, uma sociedade mais estratificada e uma maior divisão de papéis, estatutos, saberes ou funções. Teriam então condições para uma maior estabilidade de sedentarização, organizando territórios, terras de cultivo, caminhos e distribuição de águas.

Algures, podemos imaginá-los nas suas migrações com os rebanhos, levando consigo objectos e utilidades fáceis de transportar e úteis para os acampamentos ou para assentamentos um pouco mais demorados para arrotear terras, semear e esperar pela colheita. Podemos imaginar um desses grupos numa colina mais alta perscrutando o horizonte. Diz um, vê-se além uma grande nuvem de pó, e outro logo responde que é um grupo bem grande de gente e o seu rebanho. O chefe, momentaneamente distraído com as tarefas de chefia, disse: tenho pensado muito neste assunto; todos os livros ainda não inventados nem escritos dizem que seremos muito mais prósperos se tivermos excedentes alimentares e nos soubermos organizar; por isso, vamos esperar que esse grupo passe aqui no sopé da colina, organizamos uma emboscada e matamo-los todos; tudo o que ficar, animais e alimentos que tiverem consigo, constituirá então um excedente para nós e seremos prósperos. Assim fizeram. Foi bastante violento, mas isso já não era novidade entre os humanos.

Tudo o que foi saqueado deu para viver uns tempos e o grupo foi permanecendo por ali. Quando os recursos estavam a finar-se, vieram novamente para o cimo da colina perscrutar o horizonte. Diz um, vê-se além uma nuvem de pó, etc., etc., já se sabe o que a seguir sucedeu.

Da quarta ou quinta vez, o chefe teve outra ideia: tenho andado a pensar que o que temos feito não está bem; da próxima vez, matamos só uma parte do grupo; a outra será submetida e trabalhará para nós cuidando do rebanho, de alguns cultivos e de outros trabalhos rotineiros que não têm interesse nenhum; serão escravos; temos de instalar o progresso. Assim foi.

Tendo isto acontecido repetidamente, começou a espalhar-se a notícia sobre a ferocidade daquele grupo e os que tinham mesmo de passar por aquele local começaram a tomar medidas, a treinarem guerreiros e a aperfeiçoarem armas e sistemas de defesa e de ataque. Vendo que a coisa estava a complicar-se, os da colina construíram um muro alto à volta da povoação e uma grande torre, para lá de cima dominarem as movimentações.

Tinha nascido a primeira cidade e as novidades sucediam-se com rapidez. Durante séculos, entre períodos de prosperidade, surtos de peste, ataques de inimigos ou sucessos dos mercados e dos banqueiros, as coisas lá se iam compondo. A cidade continuava um magote de gente e de construções aglomeradas em espaços curtos, ruas estreitas e muros à volta. 

Um dia, o muro esfumou-se e a grande porta da muralha tombou desengonçada. Espalharam-se as construções e as estradas por todo o lado e já não se sabia onde pôr a placa com o nome da cidade. A confusão era muita. Onde estamos?, perguntavam alguns, outros respondiam que não sabiam porque não tinham rede, mas logo que tivessem a georreferenciação, vulgo GPS, saberiam onde estavam.

Era a sociedade em rede. O poder não se tinha dissolvido, nem a guerra terminado. O que não havia era a cidade-Estado e o Estado era já também uma pálida sombra de outros tempos. Tudo o que antes só se podia organizar na cidade acontecia agora em qualquer lado e tudo o que antes dependia da proximidade ou dos afastamentos aproximava-se ou afastava-se por artes nunca sonhadas, com fios ou sem fios.

Aquele chefe da cidade das origens ficaria gago para toda a eternidade se pudesse ver o que está a acontecer: torres enormes na colina menos esperada; muralhas e portas feitas em fanicos que em vez de repelir estranhos os atraem, excitadíssimos, a tirar fotografias e a visitarem ruínas e antiguidades da velha cidade; o mundo atulhado de artefactos. E os escravos? Pensaria, onde estarão os escravos e os rebanhos, terão também acabado? Pois…

1 — Edward W. Soja (2000), Postmetropolis – Critical Studies of Cities and Regions, New Jersey: Wiley-Blackwell (ed. espanhola, 2008, Madrid: “Traficantes de sueños”, p. 72)

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