Virou-se o feitiço

É uma selvajaria falar alto onde as pessoas estão a descansar, a querer ter conversas íntimas, a pensar ou a ler. A próxima vez que eu for uma vítima terei de me lembrar do que fiz – e de calar-me.

Estávamos a falar com um casal amigo sentado numa mesa ao pé da nossa. Na parte mais emocionante da conversa um senhor sentado na mesa à nossa frente perguntou-me: "seria possível falar um bocadinho mais baixo?"

Pedi desculpa e dei-lhe toda a razão. E aí zurziu-se um relâmpago de insight sobre mim. "Meu Deus", pensei, "tornei-me na pessoa que mais abomino, o gajo que grita em restaurantes".

A verdade é que eu armo-me em quietista, piamente policiando os níveis de barulho, mas, quando sou eu a animar-me, também tenho goela para chegar a toda a malta, para que ninguém perca uma sílaba das minhas indispensáveis observações.

É mais uma vez na vida que sou forçado a reconhecer que eu também sou praticante da conveniente fórmula "uma regra para os outros, outra regra para mim" ou da variante "uma regra para os outros, nenhuma para mim".

A isto pode-se chamar, caritativamente, hipocrisia inconsciente. Já não posso dizer "não faças como eu faço, faz como eu digo" porque também sou capaz de dizer aos gritos. E, a partir desta crónica, nem sequer posso dizer "faz como eu escrevo".

Para me consolar tentei culpar todos os portugueses desta tendência para falar para a sala – mas não colou. Felizmente, só uma em dez pessoas tortura assim os vizinhos. São os show offs, que em inglês não soa tão mal dizer exibicionistas.

É uma selvajaria falar alto onde as pessoas estão a descansar, a querer ter conversas íntimas, a pensar ou a ler. A próxima vez que eu for uma vítima terei de me lembrar do que fiz – e de calar-me.

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