O pré-aviso

A futura Lei de Bases da Saúde há-de ter à altura deputados que não se deixam intimidar pela voz presidencial.

Sabíamos o que era um pré-aviso de greve. Embora similares, desconhecíamos o que era um pré-aviso de veto até o Presidente da República o ter inventado, a propósito do destino que tenciona dar à Lei de Bases da Saúde que vier a ser aprovada na Assembleia da República se não merecer o voto do PSD. Tudo em nome de um “pacto de regime” e contra o “triunfo de uma conjuntura”. O Presidente da República sabe que nesta matéria nunca houve, e dificilmente haverá, sobretudo nesta altura e com estes partidos, um pacto de regime. Sabe também que no que diz respeito a conjunturas, elas podem ser mais ou menos longas. A primeira conjuntura durou 11 anos (1979-1990) e foi criada por PS e PCP; a segunda conjuntura dura há 29 anos (1990-2019) e foi criada pelo PSD e CDS. Portanto, quanto a conjunturas estamos conversados, porque nenhuma delas durou exclusivamente uma legislatura.

No caso, o que interessa, porém, é o que esconde o argumento do pacto de regime. Que é, pelo que conhecemos, a síntese das propostas do Governo e do PSD, uma vez que as outras seriam dadas de barato, significando o sacrifício das propostas do BE e do PCP contra o sacrifício da proposta do CDS. Seria o regresso ao almejado bloco central por que tanto se bate veladamente o Presidente da República, numa das matérias em que os campos políticos devem ser particularmente diferenciados. Para o efeito, o regime havia de se resumir a dois partidos, sendo que dois deles fazem parte da solução política deste Governo. Enquanto teoria da geometria variável, esta seria o expoente da incongruência. Seria o equivalente ao cadáver esquisito dos surrealistas.

Porém, o que não é afirmado pelo Presidente da República, porque politicamente inconveniente, é a escolha da via do mercado para transformar o Serviço Nacional de Saúde numa grande Santa Casa da Misericórdia. Faça-se uma incursão na proposta do PSD e está lá tudo: gestão privada dos estabelecimentos do SNS, incentivos do Estado à iniciativa privada, concorrência entre os sectores público e privado por via dessa figura totémica que responde pelo nome de eficiência.

Está em jogo na Assembleia da República o aproveitamento de uma ocasião única para se aprovar uma Lei de Bases da Saúde que proteja e promova o SNS, já que a de 1990 teve em vista fazer do SNS a principal fonte de criação e desenvolvimento da iniciativa empresarial. Não está, como nunca esteve, em causa a liquidação da iniciativa privada. Ela há-de ter a dimensão que tiver, consoante os clientes que conseguir angariar sem quebra dos deveres de solidariedade fiscal entre os portugueses. A iniciativa privada tem associados os riscos da incerteza, daí uma das justificações para ser uma actividade lucrativa. O que deixa de ser legítimo é eliminar a incerteza fazendo transportar para os contribuintes a cobertura dos riscos.

Quando se iniciar em sede de comissão de especialidade a discussão das propostas partidárias, os deputados hão-de sentir-se desobrigados de qualquer influência de quem ameaçou vetar o seu trabalho. Eles são a principal fonte de legitimidade democrática para aquilo que decidirem, e a futura Lei de Bases da Saúde há-de ter à altura deputados que não se deixam intimidar pela voz presidencial. Se a lei que for aprovada for uma boa lei, e se for exclusivamente aprovada por PS, BE, PCP e PEV, feitas todas as contas isso é que vai interessar para o futuro da política de saúde.

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