E tudo isto porque demoramos a morrer

Margaret Drabble escreveu uma prece sobre a vida ao falar da proximidade da morte. Sobe a Maré Negra é a estreia em Portugal de uma escritora fundamental das letras britânicas. Ela diz que é também o seu derradeiro romance.

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Rui Gaudêncio

E se num livro não se passar nada além da vida? A vida no que tem de mais comezinho. As refeições, as compras, o trabalho. De um livro assim diz-se que é um livro a que falta enredo. Mas está lá a vida e o pano de fundo sob o qual ela se desenrola: as circunstâncias políticas, sociais, culturais, religiosas. E os protagonistas: gente que olha essa vida já com a certeza de um fim próximo, já perto do desfecho, pondo em perspectiva o caminho percorrido até à evidência da morte. Deprimente q.b.? Não é só isso.

“As várias maneiras das várias pessoas chegarem à idade da morte é muito cómica em si mesma”, diz Margaret Drabble, Dame Margaret Drabble, escritora, ensaísta, crítica literária, 20 romances publicados, nove volumes de ensaios, contos e nunca, até agora, editada em Portugal. Chega com Sobe a Maré Negra, título tirado a uma frase de A Barca Negra, de D. H. Lawrence: “O corpo vai morrendo aos bocados e, tímida, a alma vê apagar-se a sua pegada quando sobe a maré negra.” O romance é uma reflexão sobre a velhice, carregado de mensagens políticas acerca da medicina, da ética, do prolongamento artificial da vida, onde cabem temas actuais como a crise dos refugiados ou as alterações climáticas. Mas não o “Brexit”. “O ‘Brexit’ deu-me a consciência da mentalidade de ilha que temos. É muito bizarro como a mentalidade insular veio ao de cima com o que víamos como uma ameaça: a imigração a avançar pela Europa até à nossa terra. E os números nem reflectem o pânico e a histeria com que nos pronunciámos em relação à imigração. É perturbante.”

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Margaret Drabble, escritora, ensaísta, crítica literária, 20 romances publicados, nove volumes de ensaios, contos e só agora editada em Portugal rui gaudêncio

O momento em que estas frases são ditas corresponde à altura da conversa em que a voz de Margaret Drabble soa mais firme; de uma firmeza zangada e contrastante com a fragilidade do corpo pequeno e de um olhar que — vai-se percebendo — espelha todas as emoções. Reflecte entusiasmos, dores, paixões, a ironia de algumas passagens de uma vida que cumpre 80 anos em Junho e a faz dizer que é velha, sem que isso soe a lamento, mas antes à natureza das coisas. É assim, ponto.

Entretanto, a vida corre e nessa corrida há uma frase a ecoar. “Não se pode dizer que um homem é feliz até que morra.” Ou uma mulher, como acrescenta. “Não se pode dizer que uma mulher é feliz até que morra.” Está no início do romance, precedendo a enumeração de heróis com finais infelizes: “Clitemnestra, Dido, Hécuba, Antígona”. Ao longo de 356 páginas a frase ressurge, como um coro. “É uma frase muito conhecida. Originalmente, terá sido dita por algum grego sobre como se envelhece, não me consigo lembrar qual a origem. A ideia é que a nossa vida pode ser destruída pelo último ano ou último momento dessa mesma vida. Se a vida é feliz ou se se está satisfeito com o rumo que leva, olhamos para trás com contentamento e, entretanto, acontece um desastre e estamos infelizes...”

Morrer de forma demorada

Margaret Drabble acaba de passear por Lisboa. Caminha com passos curtos, mas ágeis, interpela. Ainda é cedo, pede um expresso. A questão do fim da vida já tinha sido iniciada no final do anterior The Pure Gold Baby. Agora é o grande tema. “Tem a ver com a minha idade. Estou no meu 80.º ano e uma das minhas atenções vai no sentido da morte e da velhice. Actualmente enfrentamos questões que têm a ver com o facto de vivermos muito tempo, mantemo-nos vivos artificialmente. Não morremos apenas. Morremos de forma demorada; pensamos na morte e no quanto demora. A minha mãe teve sorte. Uma noite foi para a cama e não acordou. Durante muito tempo pensei que era assim que se morria. Mas poucas vezes é assim. A maior parte das pessoas tem uma morte muito longa.” A mãe tinha 77 anos. “Era muito nova para os parâmetros actuais, mas estava bem até morrer.”

À luz da frase-eco, a mãe de Margaret Drabble foi uma mulher feliz. Há mais frases de escritores que a ajudam a situar-se na sua realidade e a contar a de Fran, Francesca Stubbs, a protagonista do livro, mais de 70 anos, divorciada, dois filhos, inspectora de alojamentos para idosos, que desenvolveu uma obsessão por comida e cozinha todas as refeições para o ex-marido, cirurgião reformado que se conforma com a sua reforma de luxo e os dias a ouvir Maria Calas e a sentir o tempo passar. Para compor o quotidiano de Fran, Margaret rodeou-se do O Rei Lear, de Shakespeare, e de Os Dias Felizes, de Beckett. Nunca algo é citado de forma pomposa. “É que leio muito!”, ri. “E tudo o que leio entra no que escrevo. Tenho de me esforçar para me manter afastada dos meus autores. Sou uma citadora natural. Talvez porque converso sobre livros, reconhecemos referências e é uma forma natural de invocar escritores do passado e pessoas que conheço do presente. Tanto a obra de Beckett como o Lear são sobre o envelhecimento. O estranho acerca de Beckett é que escreveu sobre a velhice desde jovem, e foi continuando sempre e viveu mais de 80 anos. Em Lear, Shakespeare criou alguém que já está nos 80, mas está demente. E Shakespeare morreu com pouco mais de 50.”

Shakespeare ou Beckett escreveram sobre a morte de modos diferentes em tempos diferentes destes. Depois vem W.B. Yeats, o poeta preferido de Josephine, grande amiga de Fran, descrito no livro como alguém que “sabe falar sobre a velhice e sobre a nossa insaciável insatisfação”. Fran foi buscar essa sabedoria a uma canção da juventude. I Can’t Get No Satisfaction. De sexo, de comida, da própria satisfação.

Como chegou a Fran? “Sempre me interessei por lares de idosos. A minha tia foi para uma dessas casas. Quando se mudou para lá, tinha 90 anos, mas passei muito tempo a procurar casas dessas porque ela queixava-se muito daquela onde estava. E fui à procura de melhores e eram todas piores e ficou onde estava. Mas fiquei sempre interessada na diferença de tratamento, de atitude dos funcionários e inventei uma personagem cujo trabalho era inspeccionar lares e depois fui fingindo ser ela.”

Fran é uma mulher enérgica, vive numa torre de onde avista grande parte de Londres, gosta de se alojar em hotéis baratos e delicia-se com um pequeno-almoço de ovo cozido e torradas. Vai ao teatro, encontra-se com amigos, conduz; conduz muito, numa espécie de movimento eterno ou que a ilude sobre um fim limitado à imobilidade. Sobre se há alguma coisa de autobiográfico, hesita. “Bem, não há assim muito. Talvez a curiosidade. A minha curiosidade pelo que se passa no mundo, a vontade de conhecer novos lugares. No fim do livro vai a Blackpool, um lugar horrível em Inglaterra. Sempre quis ir a Blackpool, por isso, quando a inventei, fui. “É seu dever investigar a ‘suprema fealdade’ desta terra de iluminações”, lê-se.

Ler Sobe a Maré Negra é estar diante de uma meditação. Devastadora, cómica, por uma escritora que se declara a favor da morte assistida. “É uma escolha. Não vai simplesmente terminar com a vida das pessoas, mas permitir-lhes que escolham enquanto podem. Há uma resistência tão grande a isto no Parlamento Britânico. A maioria da população britânica é a favor, mas os profissionais de medicina e a igreja não e por isso os o parlamento sempre votou contra”. Mas o romance não é uma tese. Drabble criou também Teresa. “Teresa, que é católica, e não acredita em morte assistida. Está feliz com a ideia de viver até morrer e põe isso nas mãos de Deus”, precisa a escritora que se deixou guiar por Simone de Beauvoir. Li La Vieillesse [de 1970], um livro fantástico, ultrapassado em termos científicos, mas as suas reflexões sobre ficar velho e sobre a morte e a necessidade da morte continuam pertinentes. O meu trabalho está ligado ao pensamento dela. Escrevi o romance porque quanto mais penso nos assuntos mais me apercebo de que aquilo de que mais falo com amigos da minha idade é sobre envelhecer e morrer e como iremos lidar com isso. Era o tema acerca do qual teria de escrever.”

Uma quase oração

Escreve-o recorrendo a um misto de nostalgia e de depressão com muita ironia. “A grande dificuldade foi encontrar o tom, porque não queremos estar a deprimir as pessoas permanentemente. Também queremos que riam. Quis encontrar um tom em que houvesse um distanciamento. Percebi depois que tinha de ter personagens muito diferentes com reacções diferentes à idade e à morte. Isso era uma comédia em si mesmo, que muitas pessoas se sentissem felizes por estar na cama enquanto outras faziam tudo por elas, e outras, como Fran, que queriam guiar o carro até ao último momento, como se fossem conduzir até à morte; espalhei personagens com diferentes atitudes em relação à idade e tive o enredo.”

Enredo é a quase total falta de enredo. Há a trivialidade, as conversas, o desenrolar dos dias e uma capacidade de em toda essa trivialidade dar o essencial dos dias. Drabble ri. “Pois é. Nada acontece além da vida, mas não é preciso mais do que isso. É só ter pessoas diferentes a viver as suas vidas em justaposição. Num romance, podemos escrever de forma muito mais matizada, de um modo muito mais complicado; podemos pôr muitos pontos de vista. Um romancista deve representar pontos de vista diferentes. Claro que a minha posição ética pode ser lida através do romance. Quando se faz jornalismo, está-se noutro mundo, podemos dizer muito directamente se aprovamos ou não Guantánamo, ou a morte assistida; precisamos de afirmar a nossa posição. Num romance podem dizer-se verdades que não se poderiam dizer numa memória ou biografia porque não seriam aceitáveis. Este não é um livro político, mas quis que tivesse a consciência de que este é o pano de fundo da Europa contra o qual devemos lutar.”

Sobe a Maré Negra é ficção, mas Drabble diz que é a sua última ficção. Não sabia disso quando o escreveu, sabe agora. “Muitas coisas aconteceram desde então. Ao longo do último ano tenho feito crítica literária, mas não quero escrever mais ficção criativa. A minha filha morreu há dois anos [Rebecca Swift, consultora editorial] depois deste livro, e eu estava a meio de outro e não o quis terminar. E já não o quero fazer. Não sei se alguma vez recuperarei, mas não irei terminar esse livro. Na ficção, é preciso entrar em nós mesmos e agora há nisso muita tristeza e não quero escrever sobre isso. Não agora.”

Falar com Margaret Drabble é ir sabendo da história de um tempo. A amizade com Vanessa Redgrave, a irreverência das décadas de 60 e 70, a secularização da sociedade britânica, a preocupação de gente comum, os que andam pelas ruas, pelos transportes públicos que frequenta, as conversas que ouve nos autocarros e anota na sua cabeça. Os silêncios ou a trágica falta do que dizer no maior dos lutos. “Não sou uma pessoa religiosa, por isso não faço as minhas orações, mas digo os meus poemas e isso é uma espécie de oração. Quando a minha filha morreu, a poesia foi o meu grande conforto. Ela adorava poesia e escrevia poesia; tinha um volume para ser publicado e os poemas eram uma espécie de ligação com ela, e continuam a ser. Digo muito deles a mim mesma. A poesia é a minha religião.” 

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