Admiráveis mundos novos (e velhos) nos ecrãs de Roterdão

Três filmes do real sobre o mundo em que vivemos, hoje, no certame holandês, com destaque para o vencedor do grande prémio, Present.Perfect. Os portugueses Aya Koretzky e Filipe Martins foram também premiados.

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O filme Present.Perfect de terceira longa da chinesa Zhu Shengze é o vencedor do prémio máximo do festival, o Tiger Award dr

Aí está ele, o admirável mundo novo onde tudo se consome através do funcionalismo impessoal de um cartão de débito ou de um código de barras automático num telemóvel. Atravessar Roterdão no percurso do International Film Festival Rotterdam (IFFR) é entrar em parte nesse mundo moderno que Aldous Huxley anteviu no seu clássico de 1932. Muitas lojas, cafés e restaurantes não aceitam pagamentos em dinheiro vivo; em alguns sítios, comprar um simples bilhete de metro ou pagar um café apenas é possível com cartão bancário; a entrada para as salas onde o certame decorre é feita através dos códigos QR impressos nos passes ou nos bilhetes. Tudo muito prático, moderno, futurista – até ao momento em que o aparelhómetro que lê os códigos não os reconhece e ficamos de fora.

Os programadores do IFFR parecem não ignorar essa ironia, muito menos escamoteá-la: os melhores filmes novos que vimos ao longo de cinco dos doze dias que o certame preenche parecem “enfrentar o touro pelos cornos” e abordar de frente essa questão. Mais abertamente em Present.Perfect. (Bright Future/Tiger Competition), terceira longa da chinesa Zhu Shengze e vencedor do prémio máximo do festival, o Tiger Award, tour-de-force inteiramente construído à volta de imagens capturadas da Internet. O dispositivo remete imediatamente para o espantoso Dragonfly Eyes de Xu Bing, descoberto em Locarno 2017, mas com uma diferença: enquanto Xu construía uma narrativa a partir de uma super-colagem de imagens de mil proveniências diferentes, Zhu capturou meia-dúzia de “canais” de live streaming da China, onde gente normal exibe o seu quotidiano em directo para quem quiser ver (e contribuir financeiramente). As imagens não são guardadas em servidores – desaparecem da rede após a transmissão em directo terminada – pelo que a realizadora “gravou” uma série de emissões de normais cidadãos chineses.

Normais, é como quem diz: há uma mãe solteira que trabalha numa fábrica de roupa interior mas também um homem que nasceu com braços e pernas defeituosos, ou um outro que sofreu queimaduras desfiguradoras num incêndio. Tudo junto, pode parecer que Zhu está a fazer uma espécie de freak-show da Internet, mas o processo de acompanhamento destas personagens ao longo de alguns dias revela uma enorme solidão pelo meio de vidas infelizes passadas a tentar sobreviver, um desejo de contacto e ligação que lhes está vedado no seu quotidiano rigidamente estruturado. Como alguém diz às tantas “estamos só a tentar ganhar a vida, como tantos outros” — e o retrato que Present.Perfect. pinta dessa busca na China moderna agarrada aos ecrãs deixa muito que pensar.

À sedução dos ecrãs, o casal brasileiro formado por Clarissa Campolina e Luiz Pretti responde com a sedução das palavras em Enquanto Estamos Aqui (Bright Future). Clarissa co-dirigiu Girimunho com Helvécio Marins Jr., Luiz faz parte do colectivo mineiro Alumbramento; ambos têm experiência de montadores (com Gabriel Mascaro, por exemplo) e o seu filme constrói-se com a delicadeza de uma filigrana, entre vozes off e imagens de arquivo acumuladas numa colagem impressionista, entre Chantal Akerman, Matías Piñeiro e Julia Loktev, onde o WhatsApp e o e-mail são sempre secundários.

Um breve encontro em Nova Iorque: uma libanesa, um brasileiro, sobrevivendo como podem, encontram o romance e o amor um com o outro, sugerindo que Enquanto Estamos Aqui é um filme sobre o calor por entre o frio da cidade. Mas rapidamente percebemos que é mais do que isso — é um ensaio sobre a experiência do imigrante, sobre ir em direcção ao outro, construir um futuro na corda bamba da incerteza. Tudo através das imagens evocativamente alinhadas e da narração voluptuosamente hipnótica de Grace Passô, das palavras e dos poemas cuidadosamente escolhidos por Campolina e Pretti. Mais um título para arrumar na prateleira do moderno cinema brasileiro, que esteve em força neste 48.º IFFR — ao lado de Enquanto Estamos Aqui, houve Seus Ossos e Seus Olhos de Caetano Gotardo, Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej de Rosa Dias, Júlio Bressane e Rodrigo Lima, No Coração do Mundo de Gabriel e Maurílio Martins ou A Noite Amarela de Ramon Porto Mota.

Enquanto Estamos Aqui conta o princípio de uma história, Last Night I Saw You Smiling (Bright Future) o fim de uma outra. Aliás, de muitas outras — as transportadas pelo Edifício Branco de Phnom Penh, construído em 1963, esvaziado durante o regime de Pol Pot e que renasceu em seguida como complexo habitacional fervilhante de vida. Kavich Neang nasceu no prédio e sempre quis fazer um filme sobre ele — acabou a fazer um documentário sobre o fim da sua existência. Comprado por uma firma japonesa, o prédio foi demolido em 2017 e os seus habitantes forçados a abandoná-lo, “como nos tempos de Pol Pot” como diz uma residente do prédio. “Pelo menos agora sempre nos dão algum dinheiro, mas mesmo assim...”

Registando os últimos dias do Edifício Branco, Neang filma os seus pais e os seus vizinhos a fazerem as malas, a escolher o que vai e o que fica, a negociarem com o camião das mudanças – e a perguntarem-se o que vai ser deles agora que o prédio onde tantas das suas memórias estão investidas vai deixar de existir. Last Night I Saw You Smiling não é um filme perfeito (falta-lhe um pouco mais de concisão, de estrutura), mas no modo como retrata o adeus a um sítio que significou tanto para tanta gente, como captura essa sensação de ficar para trás num mundo que avança inexoravelmente, é francamente bonito. Três filmes que acham que ainda há espaço para o “velho” analógico neste admirável mundo novo. Ou que, pelo menos, o esperam.

Entretanto, dois dos filmes portugueses presentes em Roterdão regressam a Lisboa premiados: A Volta ao Mundo Quando Tinhas 30 Anos, de Aya Koretzky, estreado no Doclisboa, recebeu o Prémio Bright Future para melhor primeira longa-metragem; e a curta de Filipe Martins Casa de Vidro levou o prémio Voices de curta-metragem, votado pelo público do festival.

O PÚBLICO viajou a convite da Bando à Parte, do IFFR e da Nitrato Filmes

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