Bia Ferreira: a “missionária da revolução” para quem cantar é educar

A cantora, compositora e activista anti-racista brasileira estreia-se em Portugal com uma série de concertos em Lisboa, Coimbra, Chamusca, Estarreja e Porto. Vem espalhar a palavra: não é soul, r&b, rap nem reggae. É tudo isso, "é MMP – Música de Mulher Preta”.

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Em 2018, Bia Ferreira viu a sua canção Cota Não É Esmola tornar-se viral nas redes sociais. Nela, a cantora, compositora e activista brasileira de 25 anos fala em defesa do sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva, que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros, pardos e indígenas de classes mais baixas. Por causa dela, Caetano Veloso diz ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira”. E de certa forma, é isso que ela quer: chegar ao máximo de pessoas possível para “passar informação e educação”.

Cota Não É Esmola é uma explicação didáctica para pessoas brancas que são contra as quotas e é também uma música em que as pessoas pretas, pobres e indígenas podem ver a sua história contada ali e contá-la a outras pessoas. É isso que faz a informação circular”, diz Bia Ferreira em conversa com o PÚBLICO, um dia depois de o Ministro da Educação do novo governo de Jair Bolsonaro ter declarado que a “ideia de universidade para todos não existe” e que ela “deve ser ocupada por elites intelectuais”, lembra a compositora. “Corre-se o risco de retroceder mais do que conseguimos evoluir, daí a necessidade de falar sobre isso sempre que tivermos oportunidade”, assinala Bia Ferreira, que esta sexta-feira dá início à sua primeira digressão internacional, promovida pela agência Primeira Linha, com um concerto em Lisboa, no Estúdio Time Out.

Sábado estará em Coimbra, no Salão Brazil, onde antes do concerto irá participar num debate organizado por estudantes e pesquisadores da Universidade de Coimbra, intitulado Esquerda Académica e Periferia: Cadê o Diálogo?. Domingo é a vez da Chamusca, no antigo Centro Regional de Artesanato, dia 8 no Cine-Teatro de Estarreja e dia 9 no Porto, com dois concertos no Cinema Passos Manuel (a sessão da noite já está esgotada, restam bilhetes para a das 18h). Os concertos vão ter uma convidada especial: Doralyce, cantora e compositora brasileira, autora do álbum Canto da Revolução, e companheira de Bia.

A relação de Bia Ferreira com a música já é longa. Criada numa família religiosa, filha de um pastor evangélico e de uma pianista e regente de coro, sempre ouviu em casa “muito gospel americano, soul e blues”. Começou a estudar música aos três anos. “Desde criança que canto e faço as minhas próprias músicas”, conta. A partir dos 15, começou a desenvolver um discurso mais politizado nas suas composições. “Comecei a escrever poesias com um cunho político, redacções na escola, e aí ficou evidente o meu chamado para tentar educar pessoas através da música. Trazer informação além de diversão.” As canções foram sendo nutridas pelo seu próprio percurso enquanto activista. “Envolvi-me em colectivos de movimentos negros e do movimento feminista interseccional, que fizeram com que eu me entendesse politicamente.”

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Foi o encontro com esses colectivos, fora da faculdade, que a ajudaram a libertar-se “da opressão” que sentiu durante o curso de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A minha formação académica foi uma coisa extremamente violenta. Eu era a única menina negra na turma, os meus pais não aceitavam o facto de eu ser uma pessoa homoafectiva; foi um momento terrível para mim”, recorda a artista, que faz questão de sublinhar que o seu currículo académico e o seu currículo musical “não se cruzam”. “Foi muito importante ter conhecido essas pessoas maravilhosas que me situaram politicamente e que me trouxeram para um lugar do qual nunca mais saí, que é esse lugar do conhecimento.”

Desde então, Bia Ferreira tem composto música de consciencialização e combate anti-racista (e não só). Cota Não É Esmola é o seu hit, mas ela não é mulher de uma canção só: ouçamos Diga Não, em que fala do “genocídio do povo preto” no Brasil e da militarização da polícia, Não Precisa Ser Amélia, sobre a violência contra mulheres não-brancas e pobres, ou mesmo Domenica, onde celebra o amor lésbico. Não é soul, r&b, rap nem reggae. É tudo isso, "é MMP - Música de Mulher Preta”. “Eu consegui usar a música para chegar às pessoas que vêm de onde eu venho, mas que não têm acesso à mesma informação que eu tive”, aponta Bia Ferreira. A ideia não é “falar difícil como as pessoas da universidade falam” – “a informação tem de ser acessível porque é ela que liberta”, diz a compositora –, mas todo este caminho “teve de ser construído” através de “muito estudo” e de “muitas leituras”, entre elas as de escritoras negras brasileiras como Conceição Evaristo, Carolina de Jesus ou Cidinha da Silva. “Para falar o que a gente fala é preciso ter uma base teórica muito estável e concisa, pois as mulheres negras são muito descredibilizadas.”

Ameaças de morte

Bia Ferreira é uma das muitas artistas e activistas que dão corpo a um movimento negro, feminista e queer que tem vindo a ganhar protagonismo dentro da nova música brasileira. E tal como muitas das suas camaradas, a música que faz, as letras que escreve, são uma questão de sobrevivência. “Eu não posso cantar que o céu é azul, entende? Não posso, quando a polícia militar mata, pelo menos, cinco jovens pretos todos os dias. Eu não posso cantar sobre o jacuzzi do meu quarto porque eu não vivo isso. Eu não vivo a paz. Eu não tenho paz. Se eu entrar no supermercado que tenho agora à minha frente, o segurança vai-me seguir só por eu ser preta; é automático”, diz a compositora, enquanto caminha nas ruas do Rio. “Eu quero falar com as pessoas que estão nesse lugar, para que elas entendam que as pessoas pretas são donas da sua própria história. Mas para isso acontecer, é preciso ter acesso a informação.”

Para Bia Ferreira, Bolsonaro conseguiu vencer as eleições precisamente por causa do “cerceamento” e da “manipulação” da informação. “Não é que a maioria da população brasileira seja fascista. Não é isso. É o facto de não ter sido ensinada a pensar e de não ter tido acesso à história, a informação política, porque a educação pública no Brasil é muito desfasada”, observa. Sobre a manipulação de informação e as fake news, Bia dá o exemplo das mais recentes campanhas de difamação contra o deputado brasileiro de esquerda Jean Wyllys, que há uma semana renunciou ao cargo e anunciou a saída do país por causa das crescentes ameaças de morte. “É triste ver que vários jornais no Brasil estão a noticiar a corrupção da família Bolsonaro, e ela, para se defender, está a lançar uma campanha a dizer que o Jean Wyllys é terrorista e que, se está a sair do Brasil, é porque está a dever alguma coisa. É um jogo muito sujo.”

Para tentar virar este cenário, “falando e aprendendo”, Bia Ferreira quer fazer dos seus concertos “um culto”. Mas nada a ver com religião. “Estou a falar de boas novas, mas boas novas da revolução. Ultimamente tenho-me intitulado como a missionária da revolução.” Aos poucos, devagar, ela acredita que a mudança possa acontecer. “Ainda esta semana recebi um email de policiais antifascistas a oferecerem-me os serviços deles, pois eles sabem que a gente é um alvo”, conta Bia Ferreira, que além de ter lidado com algumas situações de censura no ano passado, já recebeu várias ameaças de morte por causa do seu trabalho. “Aqui a gente está a ser sufocada. Até quando vamos poder falar? Por isso a urgência em falar do que falamos e não conseguir falar de outra coisa.” A artista e activista acredita que, com o governo de Bolsonaro, problemas como a censura “vão piorar” – e por isso é preciso “hackear o sistema”, entrar nos lugares “aonde eles não estão à espera que a gente vá e levar informação”. Isso implica também continuar a tocar nas escolas e nas favelas “sem cobrar um centavo”. “É um trabalho político e social que fazemos, mas que não aparece nos media.”

No meio de todo este “sufoco”, Bia Ferreira não pensa em sair do país. “Ajudo mais estando aqui.” Contudo, dar concertos fora do Brasil é “importantíssimo”, diz. “Dá-nos a possibilidade de denunciar o actual regime do Brasil e de nos dar a conhecer. Para que, se por acaso acontecer alguma coisa contra a nossa vida, as pessoas de fora do Brasil possam saber do nosso trabalho e ajudar a que não apaguem o legado que pretendemos edificar.” No caso de Bia Ferreira, esse legado está prestes a ganhar um novo fôlego: o seu primeiro álbum, Um Chamado, chega em Abril. Não a percamos de vista.

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