Jogos de Linguagem

Todos os membros da comunidade política deveriam aprender a arte da tradução e traduzir o complicado para o simples.

Escrever e falar de forma clara é um dever democrático raramente honrado pela classe política. Como é que se pode estabelecer uma relação frutífera entre os governados e os que governam quando os governados não entendem os actos de fala dos governantes? Debater um assunto e “trazer à colação” são formas distintas de dizer coisas semelhantes. Há dias ouvi um velhote numa mercearia com televisão a dizer: “O que é que ele quer colar?” Tivesse o comentador dito “vamos debater ou considerar este assunto”, o velhote certamente teria compreendido na perfeição o que o comentador pretendia dizer.

Mas não é só o legalês que permeia o debate público, pervertendo as boas maneiras da comunicação límpida, pondo em causa a elegância da simplicidade e a dita transparência democrática. O cientismo de algibeira de algumas disciplinas das ditas “ciências sociais” como a psicologia (ex. estratégia cognitiva), a economia (ex. uma análise multivectorial) e a sociologia (ex. democraticidade) também contribuem decisivamente para a ofuscação colectiva.

George Orwell, escritor que muito aprecio, escreveu um livro brilhante sobre como se deve escrever a língua de Shakespeare. No dito livro, Orwell sugere, com a paciência e benevolência que caracterizam um bom professor, seis regras que devem ser escrupulosamente seguidas por todas/os aquelas/es que desejam, como eu, aprender a escrever bem: 1) nunca usar uma metáfora ou símile que surja habitualmente na imprensa; 2) nunca usar uma palavra longa e complicada quando é possível usar uma palavra simples e pequena que transmita o mesmo significado; 3) se for possível cortar uma palavra sem deturpar o sentido da frase, corte-a; 4) preferir sempre a voz activa do verbo; 5) nunca usar uma frase estrangeira, palavra científica ou jargão quando existe uma palavra ou frase equivalente mais simples na língua materna/corrente; 6) deverá quebrar estas regras se estiver prestes a dizer ou a escrever algo que não faz qualquer sentido.

Se desejar seguir as sensatas regras de Orwell, não deverá dizer ou escrever inane quando pode dizer ou escrever inútil, oco, vazio ou inválido. Ou seja, deverá preferir sempre a simplicidade à pompa. Em Portugal, tal como na Grã-Bretanha de Orwell, é comum assistirmos ao uso deliberado de termos pomposos. A elaboração desnecessária da linguagem é, nestes e noutros países, erradamente entendida por muitos como sinónimo de inteligência ou de sofisticação. Alguns diriam, a meu ver incorrectamente, que estas elaboradas formas de expressão são pouco mais do que uma estratégia de afirmação de poder. O que estes críticos, habitualmente neomarxistas, não compreendem é que todos nós somos prisioneiros dos nossos passados, como diria Milan Kundera.

O advogado fala como um advogado porque foi esta a sua formação académica. Os conceitos e os regimes discursivos a que foi exposto enquanto se formou intelectualmente foram os conceitos do direito. Logo, é perfeitamente natural que recorra ao vocabulário que melhor conhece para se exprimir. O mesmo acontece com o economista, psicólogo, sociólogo, etc. Não se trata, portanto, de tentar limpar o vernáculo ou de impor uma linguagem politicamente correcta ou simplificada ad absurdum (mea culpa) mas apenas de chamar a atenção a todas/os aquelas/es que participam no debate democrático que a linguagem que usam pode não ser acessível a todos os ouvintes. Ou seja, todos os membros da comunidade política deveriam aprender a arte da tradução e traduzir o complicado para o simples. Aconselho a leitura dos livros de Orwell (e de Wittgenstein, Nietzsche, Maquiavel e Hobbes, etc.) àqueles e àquelas que acreditam que não é possível exprimir, interpretar e descrever ideias e realidades complexas recorrendo a frases simples. A elaboração fútil da linguagem não é um sintoma de inteligência ou de sofisticação “analítica.” É uma espécie de fuga desesperada para o abstracto.

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