Numa casa em Cascais, há dois mundos que se encontram. E que festejam juntos

O Douro trouxe-lhes a bondade e a humildade. Das Filipinas chegou-lhes a noção de pertença: a casa de José e Thelma nunca se fecha à comunidade filipina em Portugal.

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Leilani é a líder da comunidade e uma das principais dinamizadores do Sinulog Nuno Ferreira Santos
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Mabille e Carlos casaram-se em 2013 e decidiram instalar-se em Portugal Nuno Ferreira Santos
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Depois de uma chegada atribulada a Portugal, Merle conseguiu encaminhar a sua vida, muito graças à comunidade filipina que a acolheu Nuno Ferreira Santos

O que têm em comum Lamego e Manila? José Esteves Santos, de 80 anos, é um poço de histórias intermináveis e o elo de ligação entre estes dois locais distantes. Os tempos de meninice, passados a cirandar nas ruas do Porto, fizeram-no ver coisas que um garoto de 12 anos não deveria viver. Depois de muitas voltas à vida, o rapazito lingrinhas que recolhia o dinheiro das noites da Invicta para entregar aos proxenetas, mal sabia que iria correr o mundo e encontrar o amor num lugar longínquo. E tornar-se, com esse amor, num pólo aglutinador destes dois mundos. Em Cascais.

Em 1997, a internet era ainda um mundo virtual por desbravar, mas Thelma Santos fazia uso dela para se ligar ao mundo. Por essa altura, já muita coisa havia mudado na vida de José. De petiz do interior duriense, transformara-se num cidadão do mundo. Crescera e fizera fortuna com uma empresa de construção. Tinha negócios em todos os cantos e a sua vida era passada de avião em avião.

José, com 59 à altura, lançou-se ao mundo das tecnologias e foi assim que conheceu Thelma. Ela nas Filipinas, e ele pelo mundo, mas sediado em Joanesburgo, na África do Sul. Apaixonaram-se através da internet: trocaram mensagens durante um ano e foram-se conhecendo. Em 1998, Thelma trabalhava em Taiwan e resolveu tirar férias durante dois meses para ir a casa.

Durante esse Verão, o telefone tocou-lhe inusitadamente. “Onde estás?”, “Nas Filipinas”, responderam-lhe do outro lado. “Mas nas Filipinas onde?”. “Em Manila” retorquiu-lhe a mesma voz. José correra meio mundo para conhecer Thelma, mas o mais curioso — e talvez a prova que o amor assim o desejou — é que o hotel de José ficava a 15 minutos da casa de Thelma.

Tudo o que interessa saber sobre o resto da vida de ambos resume-se a essas duas semanas que se seguiram. Thelma apresentou José ao primo, que era intendente da polícia na capital filipina, e que viu no homem de Lamego uma pessoa “humilde, bondosa e educada”.

Daí até se casarem foi uma questão de dias. Depois disso, Thelma foi com José para a África do Sul, durante cinco anos. Até que nasceu Gabriel e aí Portugal entrou na equação de forma definitiva. “Disse que preferia Portugal à África do Sul”, diz Thelma. E José fez acontecer. Mudaram-se de armas e bagagens.

Hoje, Gabriel Santos, de 17 anos, é um adolescente viajado. Os primeiros cinco anos foram passados na África do Sul, seguiu-se Portugal. O jovem também já visitou o continente asiático e o país da mãe.

Prestes a terminar o 12.º ano, tem as ideias bem definidas: quer ir para a Escola Naval e enveredar no curso de fuzileiros. A mãe Thelma nunca quis ensinar-lhe línguas filipinas (o tagalog — a oficial — ou o bisaya, outra língua) e Gabriel também não sentiu essa necessidade para se manter próximo da família. Quando fala com a família da parte da mãe fá-lo em inglês e já está. Ricardo, de 7 anos, é o outro elemento da família e o mais novo.

Em São Domingos de Rana, Cascais, os domingos costumam ser sinónimo de casa cheia. A moradia de José e Thelma serve de base a uma série de iniciativas da Associação Filipina Portuguesa, da qual Thelma é vice-presidente.

Os filhos já estão habituados ao corrupio. Desta vez, ensaiam-se danças para o Sinulog, o principal festival católico na Filipinas. A 20 de Janeiro celebra-se, na Basílica da Estrela, uma missa católica em honra de Santo Niño — um santo que Fernão de Magalhães terá entregado ao rei quando pisou solo filipino pela primeira vez, na ilha de Cebu, e que iniciou, por assim dizer, o processo de conversão ao catolicismo naquele território desconhecido. Depois da missa haverá uma dança e é isso que se pratica em mais um domingo de casa cheia.

Leilani Yu é a líder da comunidade e está em Portugal desde 2009. Criou a associação pois “sentia que as pessoas precisavam de ajuda”. Foi assim que em 2010 decidiu fazer algo para ajudar quem chegava.

Celia Feria, embaixadora filipina em Portugal, estima que existam cerca de 1000 filipinos no país, ainda que 900 possam estar fora das estatísticas. 80% dos migrantes são mulheres que vêm para Portugal trabalhar como prestadoras de serviço, dá conta a representante filipina.

Leilani e Thelma bem o sabem: a maior parte da comunidade é constituída por mulheres que trabalham como domésticas.

Merle Martilla, de 51 anos, trabalhou em Hong-Kong e Angola durante nove meses, para um empregador português. Em Janeiro de 2016 veio a Portugal, durante as férias da família para quem trabalhava, e acabou por ficar. Mas não pelos melhores motivos. “O patrão, um cidadão português, não me pagava o salário, não me dava comida, nem dias de folga”, conta, sem querer esconder o seu passado. A gota de água foi quando lhe retiraram o passaporte. Aí então decidiu fugir, sem nada.

Thelma acolheu-a até Merle reorganizar a sua vida. Arranjou-lhe um trabalho e deu lhe apoio quando estava sozinha num pais estranho, sem documentos. Merle deslocou-se à embaixada e expôs a sua situação. A sua vida em Portugal começaria, finalmente, a partir daí.

Carlos Sampaio e Mabille Tamala são outro casal cujo destino passou por Portugal. O programador informático e a fotógrafa, de 34 e 32 anos respectivamente, começaram a falar na internet em 2003, mas só seis anos mais tarde é que as coisas mudaram significativamente. Na altura, Carlos Sampaio, acabado de sair da universidade, queria fazer “a viagem de uma vida”.

O destino não é difícil de adivinhar. Nas Filipinas, juntou-se a Mabille, depois de tantos anos a trocar cartas virtualmente. Durante um mês percorreram o país, tornando em algo mais a relação de amizade que já durava desde 2003. Em 2009, iniciaram uma relação à distância que se arrastou até 2013.

Nesse ano “as coisas já estavam a ser muito difíceis”, conta Carlos. As férias eram tiradas de uma só vez para passar tempo com Mabille. E foi assim que, em 2013, a família de Carlos foi até às Filipinas para conhecer a família da futura mulher.

Depois de se mudarem para Portugal e de Mabille engravidar, foram as saudades de casa que levaram a que Thelma entrasse nas suas vidas. A jovem filipina estava grávida e procurava comida com sabor a casa. Thelma estava novamente lá: o jovem casal era vizinho da família de José e passaram a frequentar a sua casa. O filho não perder a raiz filipina é uma das preocupações do casal. “Se não houver uma ligação às Filipinas, ele vai acabar por se desligar”, assentem.

Mabille não esconde que “toda a gente sonha com uma vida melhor. Ou com poder mandar mais dinheiro para casa”, mas enquanto existir uma porta aberta em São Domingos de Rana, onde aos domingos o cheiro dos enchidos do Douro se mistura com os sabores agridoces de um país do outro canto do mundo, a comunidade filipina terá uma família em Portugal.

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