No escuro com Kapuscinski e uma lanterna para bichos sonolentos e poetas

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Carlos Poças Falcão

O livro foi lançado no final de Outubro, mas só agora foi parar lá a casa. Dois meses de atraso quando se tem uma bebé de um ano para cuidar não é nada. O tempo fica virado do avesso, a vida também. O normal é andar-se um pouco alheado de tudo, menos de desenhos animados e livros infantis – recomendo o original e divertido Eu Sou, Eu Sei, de Ana Pessoa e Madalena Matoso, ou o Boa Noite a Todos, de Chris Haughton, que a minha filha começou a folhear neste Natal e que esperemos que lhe venha a dar muito sono, em muitas noites. A ela e a nós – os adultos gostam tanto de um bom livro infantil como as crianças.

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Mas voltando ao livro que entrou lá em casa, com dois meses de atraso: trata-se de Kapuscinski - Uma Vida, do jornalista Artur Domoslawski. Escolhi-o para oferecer a outro jornalista, tendo também em conta que a primeira obra que fomos ver ao cinema, 11 meses depois de a nossa filha nascer, foi precisamente Mais um Dia de Vida, o filme de animação de Raúl de la Fuente e Damian Nenow, adaptado do livro de Kapuscinski sobre a guerra civil de Angola. A pequena com os avós, nós na excitação e no espanto do escuro de uma sala de cinema. Do filme para a biografia foram meia dúzia de passos.

Vi-o na montra da livraria de poesia lá da rua e levei-o. Está lá em casa, mas não é meu, eu ofereci-o, até porque estou embrenhada no arrebatador A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine, e não há tema que me seja mais caro do que este: tenho um fascínio pelo inútil e um desapego pela lógica de que só o que dá lucro é útil. Fico facilmente enfeitiçada pelo que vive (e sobrevive) à margem do turbilhão do trabalho e do dinheiro, como a poesia.

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Miguel Manso

Adília Lopes interpelou-me, muitas vezes, nos longos períodos de silêncio da minha licença de maternidade. Naqueles meses, enquanto todos trabalhavam e eu e a minha filha passeávamos de marsúpio pela rua (sozinhas e sempre acompanhadas uma pela outra), víamo-la no passeio. A Adília Lopes. Nesses momentos, explicava ao ouvido da minha filha que ela era Lopes como nós e que escrevia as mais belas, desempoeiradas e aparentemente simples reflexões sobre o quotidiano, sobre os dias, sobre nós.

Numa dessas vezes, Adília Lopes reparou, tenho a certeza, no chapéu da minha filha: cor-de-rosa, de lã, feito à mão, e com uma grande flor branca pregada. Está entre o kitsch e o fofo, mas fica encantador na cabeça minúscula dela. Segredei à minha filha: “Tu e o teu chapéu ainda vão parar a um poema. Temos de estar atentas.” Nesse início do ano, e na mesma livraria de poesia lá da rua, comprei o Estar em Casa – o título não podia ser mais adequado à minha condição da altura, a de mãe de licença.

Ainda sobre esta inutilidade deslumbrante que é a poesia, falta-me referir o recente Sombra e Silêncio, de Carlos Poças Falcão. Tenho as outras obras dele, fascinei-me tanto com os primeiros livros de poesia que escreveu (O Número Perfeito e o Invisível Simples) como me fascinei com muitas linhas de Herberto Helder, fiz trabalhos sobre os dois para uma cadeira de Poética na faculdade. Carlos Poças Falcão era professor na escola onde andei, em Guimarães. Entrevistei-o quando era uma adolescente extasiada pelas coisas e, ao contrário do que se diz, não há melhor altura para a poesia do que a adolescência.

Só não mergulhei ainda no Sombra e Silêncio, por uma razão: à noite estou sempre a adormecer a minha filha, num quarto às escuras. Como não consigo ler nada em papel, deram-me um kindle. E pus-me a ler livros antigos, como o Monte dos Vendavais (leio muito baixinho as loucuras e as vinganças do Heathcliff, sabendo, claro, que a minha a filha as descobrirá um dia). Ainda ando entre o Monte dos Vendavais e a Granja, mas já recebi também, como prenda, uma lanterna daquelas de pôr na testa. Toda a nossa vida se vai adaptando à bebé. Mas uma lanterna na testa para ler poesia, num quarto às escuras, parece-me a metáfora perfeita sobre o que nos pode iluminar a nós e às noites.

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