A acrobacia de Catarina e Telmo funciona “como uma árvore de Natal”

A acrobacia a dois é “uma história de teatro com técnica pelo meio”. A técnica é trabalho, a narrativa é o que constrói a arte. Se durante o ano Catarina e Telmo utilizam a agilidade para expor problemas sociais, em Dezembro mudam de ares e de temas. O Natal marca o período mais estável da vida de circo e permite ao casal fazer planos para o amanhã.

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Catarina e Telmo trabalham juntos há 3 anos RUI GAUDÊNCIO

“A acrobacia a dois tem de funcionar como uma árvore de Natal, de baixo para cima. Tens muita bagagem, como na base, e no palco só utilizas um terço dela, aquilo que faz parte da estrela”, vai dizendo Telmo Duarte, de 24 anos, enquanto admira a árvore iluminada que marca o centro da Feira de Natal de Cascais. Durante o mês de Dezembro, Telmo e Catarina Ribeiro afastam-se do circo e ocupam os seus dias a fazer animação pela feira — que só é interrompida para subirem ao palco em curtos espectáculos durante o dia, onde levantam o véu daquilo que melhor sabem fazer: a acrobacia a dois.

O Natal, para um casal acrobata, marca o mês mais estável de um ano que oscila entre trabalhos breves e pouco certos. “No Natal surgem muitos trabalhos de animação, com menos tempo para o espectáculo, mas é um trabalho que sabemos que temos”, explica Catarina Ribeiro, 22 anos. “Não é como no resto do ano, em que nos convidam uma semana para ali, um dia para acolá. Aqui conseguimos criar objectivos para Janeiro, por exemplo.”

O casal, vestido com o tradicional verde e vermelho natalício, com chapéus de duende na cabeça e as bochechas pintadas de rosa, circula pela Feira de Natal organizada pela Unisports, que ocupa o Parque Marechal Carmona, em Cascais. “Olá, princesa!”, cumprimenta Catarina sempre que meninas dão descanso à correria para uns segundos de contemplação dos fatos de Natal.

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Na feira, Catarina e Telmo brincam com as crianças, conversam com os pais e, essencialmente, trazem um ânimo sem descanso ao parque. “O Telmo, às vezes, em vez de animar, parece que fica a dar lições de moral aos miúdos”, brinca Catarina. “Eu apenas lhes digo que, antes de qualquer coisa, têm de se lembrar de serem felizes”, responde Telmo.

Encarar a felicidade como regra é a máxima que tem suportado a vida instável do circo, sublinha Telmo: “Eu faço circo porque sou feliz a fazer circo. Quando estivemos a preparar um espectáculo para o Busking Festival, ficámos um mês inteiro sem trabalho. Eu estava chateado por andar sem dinheiro, mas ao mesmo ficava feliz por saber que estava a fazer aquilo de que gosto.” 

Telmo viveu a sua infância num estado permanente de curiosidade e inquietação com o mundo. “Chegava a casa todo sujo e a minha mãe dizia-me 'Ainda vais ter uma morte macaca’”, partilha Telmo. Durante a adolescência, começou a ir a festas de reggae, onde tinha a oportunidade de explorar o mundo do malabarismo. A curiosidade, que não tem forma de esmorecer, fê-lo entrar para o Chapitô, em 2011, um ano antes de Catarina, que teve um percurso mais convencional: começou, aos sete anos, por fazer ginástica acrobática, expondo as aprendizagens em competições. “Comecei muito nova e depois fui ficando. A Karley Aida [uma das fundadoras do Chapitô] dizia-me ‘O circo vai ser a tua vida’. Eu ria-me. Depois fui lá parar.”

O Chapitô juntou-os

Apesar de terem sido alunos da mesma escola de artes circenses, os caminhos dos jovens faziam-se de coordenadas diferentes: Catarina foi estudar acrobacia a dois para Montpellier, em França, e Telmo para Inglaterra. Há três anos, o Chapitô convidou-os para um trabalho na Zambujeira do Mar, no Alentejo. “Conhecemo-nos lá. Começámos a namorar uns dias antes de trabalharmos juntos”, ri-se Catarina.

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Desde então, o casal trabalha sempre em dupla. Um dos primeiros e mais marcantes espectáculos que fizeram juntos expunha o tema da violência doméstica. “O Chapitô trabalha muito com questões sociais e eu queria muito trabalhar este tema, porque mexe muito comigo", explica Telmo. “Queria muito mostrar às pessoas que esta continua a ser uma realidade escondida entre quatro paredes, que acontece todos os dias.” O melhor desse trabalho, destaca, foi o facto de terminar com dois finais diferentes: “um feliz, em que a família acabava junta, e um trágico, onde a situação da violência continuava a repetir-se”. O objectivo era que o público abandonasse o palco com mais inquietações do que aquelas com que tinha chegado. “Queríamos que as pessoas ficassem a pensar neste tema, nesta história.”

Este espectáculo chegou ao fim, mas Catarina e Telmo não abandonaram a coreografia. “Começámos a pensar no número, a moldá-lo, a colocar mais técnicas e mudámos a música”, recorda Telmo. Apresentaram-no em feiras, salas de teatro, cabarés. 

Ainda que a técnica seja indispensável, só ganha encanto quando tem a capacidade de transmitir uma narrativa. “A acrobacia é como uma história de teatro com técnica pelo meio”, explica Telmo, que considera que a prioridade num espectáculo é a mensagem que os artistas querem transmitir. “A técnica é só um instrumento. Eu deixei, precisamente, de fazer tantos malabares, porque não encontrava razão para os pinos. Queria dar prioridade à minha personagem e à história.”

“Se eu quero fazer a personagem de um velho, tenho de observar a posição do corpo quando eles se mexem, ver pequenos pormenores na forma como se exprimem”, diz Telmo. Contudo, também há trabalhos em que a narrativa é apenas uma forma de expressão. “Sentes que és tu a fazê-los e não uma personagem. És um espelho de ti no palco, porque te queres expressar, tal como acontece na pintura ou música”, diz Telmo.

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A volante Catarina e o base Telmo

Catarina e Telmo vivem juntos, ora na Ericeira ora em Casal do Marco, Paio Pires. Desde que saíram do Chapitô, têm tido sempre trabalho no chamado “circo novo”. “Esta forma de circo contemporânea já não trabalha com animais e não acontece na tenda tradicional de circo”, explica o acrobata. A tenda redonda e colorida do circo é substituída por feiras, salas de espectáculo ou salas de teatro. “Também já não é só técnica pura e dura. Temos história e relacionamos várias técnicas, como dança, circo e capoeira.”

“Por sermos namorados, tem de existir uma barreira nos ensaios. Se deixamos cair a coisa para o pessoal, torna-se impossível. Nos treinos, eu sou a volante dele e ele o meu base. Quando saímos, somos namorados outra vez”, descreve Catarina. “Nem sempre acontece, como é obvio. Quando estávamos a preparar o espectáculo da violência, havia vezes em que acabávamos o treino porque ele dizia ‘Olha, não vai dar’. Mas isso era o Telmo a falar com a namorada, não podia ser o Telmo a falar com a volante”, continua. 

No número que agora se encontra em processo de criação, a dupla conta com a participação de um novo artista, com o qual se cruzaram na Feira de Natal. Telmo elogia a Associação Indecisas Produções, que não só ajuda “a malta do circo a arranjar trabalho” — como é o caso da Feira de Natal —, como estimula a rede de contacto entre os artistas. O novo projecto vai ser pensado a partir de 1 de Janeiro de 2019, quando termina a feira. A vontade é que o espectáculo seja apresentado no início do próximo Verão, mas as ideias já começam a fervilhar. “Agora construímos uma nuvem de ideias. Temos de ver o que resulta ou não”, diz Telmo. A única certeza, até então, é que o espectáculo se vai coser de preocupações sociais.

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Como prenda de Natal, o casal gostava de encontrar um espaço para trabalhar todos os dias, por ser "muito importante estar sempre a treinar, a preparar o corpo para a acrobacia”. Catarina e Telmo ensaiam, actualmente, num espaço em Alfragide, mas, como têm de pagar uma quantia diária, não conseguem treinar todos os dias. “É uma coisa que estamos a pedir muito ao universo para que aconteça”, confessam.

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