Conan Osiris: o 2018 dele foi tão silly e deep que o mundo podia acabar amanhã

Foi uma das apostas do Ípsilon para 2018, e foi certeira. Deu dezenas de concertos pelo país, as suas canções chegaram a várias pessoas, dos oito aos 70 anos. Viveu muita vida, valeu muito a pena – na alegria e na tristeza.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Retoca o cabelo, ajeita os brincos dourados, baixa as mangas do casaco e faz poses para a câmara. Tiago Miranda, 29 anos, mais conhecido por Conan Osiris, parece que nasceu para isto, para ser fotografado. “Acredito bué que uma fotografia te imortaliza”, diz. Num banco do Kit Garden de Joana Vasconcelos, no Largo do Intendente, em Lisboa, vira-se de cabeça para baixo, pernas para cima, faz olhar matador. Muitos dos que passam param, observam. Há quem reconheça bem esta cara. Afinal, goste-se ou não, 2018 pertenceu-lhe. Desde o primeiro concerto, esgotadíssimo, na ZDB, com fãs a cantarem as letras do início ao fim do álbum Adoro Bolos, até à actuação no Tivoli, durante o Super Bock em Stock, com casais de 70 anos, crianças de oito, pessoas dos 20 aos 50 nas primeiras filas. Pelo meio deu dezenas de concertos, sobretudo em Portugal mas também no Brasil, no festival SIM São Paulo. Entrou num anúncio da NOS, recebeu vídeos de velhotes no Alentejo a ouvir a sua música.

“Isto é quase tudo o que sempre quis: conseguir comunicar com as pessoas na boa. Ver que a minha música está a conseguir fazer isso por mim. Daí que se o mundo acabasse amanhã, tá-se bem: já consegui conectar-me com pessoas tão diferentes de mim. É que bué tempo da minha vida foi não conseguir falar com as pessoas por causa de entraves e, para mim, não poder comunicar é mortal.” Conan Osiris já conseguiu fazer boa parte do que sempre quis, mas não vai abrandar em 2019. É um dos compositores escolhidos para o Festival da Canção, vai ser o programador de música na Semana de Programadores partilhada pelo Festival DDD – Dias da Dança e o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), no Porto, e vai continuar a trabalhar no quarto disco. Entre muitas outras coisas que não pode revelar. Uma coisa é certa: ele vai andar por aí.

No início de 2018 disse que se o mundo acabasse amanhã se ia "estar a cagar”. Depois de um ano em que tocou e foi falado em todo o lado, diria a mesma coisa?
Diria, se calhar até diria com mais força. Porque fiz ainda mais cenas, vivi ainda mais vida, então valeu ainda mais a pena. Porque já interagi com mais gente.

Refere-se às pessoas que conheceu ao longo deste ano e ao alcance da sua música?
Exacto. Pessoas que me vieram dizer cenas, pessoas que sentiram cenas por me conhecer…

Qual foi a reacção que mais o marcou?
Não consigo apontar uma… Há uma rapariga que costuma vir a bué shows meus e tinha mandado mensagem a dizer que tinha acontecido uma cena um bocado má na vida dela, mas que ia na mesma ao concerto. Vi-a na primeira fila, a chorar. E eu sabia a razão. Tive de deixar de olhar para ela porque…

Porque se não começava a chorar?
Provavelmente.

A sua música dá para chorar?
Sim. Não só porque eu acho, como bué gente me vem dizer que ficou tocada. Depende da sensibilidade. Há quem vá achar que é uma cena bué silly, há quem vá achar que é uma cena bué deep.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Que parte de Conan Osiris é personagem e que parte não é?
Nada é e tudo é. Qualquer pessoa, com qualquer trabalho, é e não é.

Mas o Tiago Miranda e o Conan Osiris são a mesma pessoa?
É a mesma coisa. Não ia fazer música e dizer: “Lancei um álbum, sou o Tiago Miranda.” Era ridículo.

Por causa do nome?
Sim. Primeiro, porque é o nome que me deram, não aquele que escolhi. Logo aí, não é cem por cento eu. Não me representa como um todo. Já Conan Osiris representa-me mais. É o que escolhi para me representar. Se um dia houver viagens no tempo, no passado vai representar-me, no futuro também.

Já que fala no passado: foi vítima de bullying na adolescência e quando andava na escola já se vestia de forma considerada diferente.
A roupa não era assim tão diferente, era roupa que existia, normal. O que para mim não é normal são coisas como a violência, a destruição. Vestia-me normal, agia normal, falava para as pessoas normal, se calhar ria-me de coisas que mais ninguém achava piada ou ouvia música que muita gente ao pé de mim não ouvia, mas aquela música existia e não era só eu que a ouvia. Portanto, vou continuar a bater nessa tecla da normalização das coisas que não são destrutivas.

O bullying não vinha daí, então.
Vinha, é óbvio. Vinha de eu ter o cabelo pela cintura, de usar três terços ao mesmo tempo… Na realidade, a escola é um sítio violento, desde sempre. Não quero dizer que vai continuar a ser, porque os miúdos agora estão mais evoluídos. Cada vez mais sinto que a ignorância é opcional. Tem-se acesso a tudo, temos um telemóvel, temos mais pólos de educação para nos ajudar a perceber a via que podemos querer seguir ou não.

Foto
>b>CONAN OSIRIS é um dos compositores escolhidos para o Festival da Canção, vai ser o programador de música na Semana de Programadores partilhada pelo Festival Dias da Dança e o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), no Porto, e vai continuar a trabalhar no quarto disco Nuno Ferreira Santos

Independentemente do contexto familiar?
Ya. Com a net consegue-se chegar lá. Podemos construir a nossa educação, e notamos isso nos putos de hoje. Isso é bom. É esperançoso. Se pelo menos tentar não perpetuar coisas que têm de acabar, já estou confortável. Tem a ver com promover a tolerância, a convivência. Está errado vermos algo de uma cultura que não está próxima da nossa e encararmos isso como uma piada. Uma coisa não pode ser um objecto de humor só por ser externa à nossa cultura.

Essa questão leva-nos para a música: no Adoro Bolos, além de fado, há kuduro, música cigana, do Médio Oriente, dos Balcãs. Não está a apropriar-se disso, a fazer objectos de humor?
Acredito que quando começamos a levar uma coisa demasiado a sério, com trâmites demasiados rígidos, aí é que nascem certas implicâncias. Eu tenho bué planetas em Sagitário, bué planetas na Casa 5 [do mapa astral], e isso tem muito a ver com o humor. Eu tive tanta tristeza na minha vida como humor. Não consigo tirar o humor só para as pessoas pensarem que é uma coisa mais séria. Estou-me a cagar para essa merda. Imagina, quis meter um bocado de humor naquela música, mas não quer dizer que seja jocoso.

Porque é que gosta de cruzar tantos tipos de música?
Isso espelha o que ouço. Para mim é o normal. O que não suporto é ver as pessoas a dançarem bué uma cena e isso ser uma piada.

Dançar ironicamente.
Exacto. As cenas que mais detesto são as expressões “gostar ironicamente”, guilty pleasures. Odeio essa merda. Tudo é cultura. Tipo, és guilty de quê? Eu adoro a Rebeca, da [canção] O meu nome é Rebeca. É uma mulher que tem não sei quantos anos de carreira, que trabalha imenso, que faz as músicas dela… que direito é que tenho de chamar àquilo um guilty pleasure? É mesmo um pleasure.

E é assim desde que ouve música?
Exacto. A minha educação musical foi assim.

Quando andava na escola, no Cacém?
Quando fui para o Cacém foi quando começaram a surgir as trocas mais multiculturais. Eu vivia em Lisboa e já tinha começado a surgir o kuduro, mas lá as coisas estavam muito mais à frente. Foi todo um novo mundo. Comecei a ouvir música que nunca tinha ouvido. Se não tivesse estado lá não tinha nem metade da minha cultura musical. Por muitas situações más que tenham acontecido, apesar do bullying, não olho para trás e vejo isso como coisa má. Foi uma coisa má na altura, mas sinceramente eu tinha uma vida em casa tão má que era tudo mau. Pelo menos na escola estava com os meus amigos e ria-me. Era bué bittersweet, e sempre foi, porque afinal de contas a vida é bué bittersweet. E também é um bocado essa a cena da minha música.

A música funcionou como um mecanismo para ajudar a lidar com isso tudo?
Totalmente.

A música tem mudado de disco para disco. O primeiro, Silk (2014), tinha sobretudo músicas que fez para desfiles de moda, apesar de terminar com a Amália, que é mais próxima do que faz agora. No segundo, Música, Normal (2016), a preocupação com as letras parece-me menor e não canta apenas em português. E por fim Adoro Bolos, lançado no final de 2017. É como se estivéssemos a acompanhá-lo numa procura de identidade, de um som.
Não acho que seja tanto uma procura, mas a minha gaveta do ser português sempre esteve com uma fechadura um bocado estragada. O que é mesmo ser português? Demorou-me vinte e tal anos para perceber. Com o Adoro Bolos se calhar consegui perceber o que é eu ser português.

Foto
Nuno Ferreira Santos

E o que é?
Acho que agora estamos a saber o que isso é. A aceitar e curtir ser português. Mas demorou. Há dez anos sei perfeitamente que não ia cantar em português porque tinha vergonha. Tenho super-respeito por quem cantava em português nos anos 80, tipo Lena d’Água. Nos anos 90 achávamos que cantar em inglês é que era fixe e depois lembramo-nos que “oh pá, baza lá sermos nós próprios”.

Nesse sentido, os artistas que nos últimos anos fizeram questão de cantar em português, da FlorCaveira ao B Fachada, passando pela Cafetra, foram uma influência?
Sim, mas isto também tem a ver comigo, porque eu tinha vergonha da minha voz e comecei a perder isso na Amália. Quando fiz a Amália fiquei duas semanas a pensar: “Eu não vou pôr isto [no disco], eu a cantar em português, é bué pessoal, faz-me chorar demasiado.” Mas se isto resulta para mim, porque não hei-de mostrar às pessoas e elas que sintam o que sentirem? Foi a partir daí que pensei: “Acalma-te. A tua voz não é assim tão feia. Talvez melhore.”

E o quarto disco? Já há canções?
Isso agora… Não gosto de fazer projecções, gosto de respeitar o presente. Mas claro que já estou a trabalhar.

E editoras, já andam atrás?
Isso também não posso dizer. Mas há conexões.

Na marcação desta entrevista percebemos que dá muita importância às fotografias. Porquê?
Acredito que uma fotografia te imortaliza. E às vezes tenho dificuldade em lembrar-me de coisas quando não há fotos. Não é só uma fotografia, aquilo está a marcar um ponto. Daqui a 50 anos, quando não te lembrares de como era a tua cara, o teu cabelo, a cor da tua roupa, vais olhar para aquelas fotos e dizer: “Uau, eu era assim.” Vivemos num mundo visual. Não respeitar isso ou fingir que não se dá importância a isso é hipócrita, na minha opinião.

Por outro lado, não tem nenhum vídeo oficial.
Pois [risos]. Talvez o vá fazer, mas este álbum [Adoro Bolos] não foi ainda o lugar para isso. Vejo este álbum como um livro. Um livro do género “quem é que eu sou”.

É um dos compositores convidados do Festival da Canção de 2019. Interessa compor e escrever para outras pessoas?
Sim. Infelizmente, tenho muitas coisas pendentes de pessoal que me pediu e não tenho tido tempo. Mas dá-me gozo e é lisonjeador um artista – principalmente pessoal que já está aí há bué tempo – vir ter comigo porque confia em mim o suficiente para haver uma brecha em que me torno ele e eu estou a falar por ele.

E já consegue viver da música ou ainda trabalha na sex shop?
Já não trabalho, mas tenho boa relação com eles e estou sempre a dizer: “Olhem, se precisarem de horas extra, por favor chamem-me. Tenho saudades.” Deu-me educação, mesmo sobre a humanidade. E sobre coisas que nunca iria saber se não tivesse ido para lá.

A sexualidade é importante para as canções?
É. Ao trabalhar lá consegui perceber que não existe a sexualidade. É uma coisa que está em ti e que devia ser muito mais naturalizada. A sexualidade somos nós próprios, é a dança, a maneira como movemos a boca; tudo é sexualidade. Se tens problemas com a tua sexualidade a tua vida está fodida. Essa aprendizagem foi fulcral para mim. Eu fui trabalhar para a loja e era virgem. Isso já diz muito.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários