Insurreição e pobreza

Uma das medidas de Emmanuel Macron para deter as revoltas que têm encontro marcado, em França, todos os sábados, foi anunciar um aumento de 100 euros do salário mínimo. Nunca antes se tinha tornado tão claro o que significa o “mínimo” salarial: não se trata do mínimo para garantir uma vida decente, embora pobre, mas do mínimo num sentido político, isto é, o limite aquém do qual há o risco de insurreições, revoltas, ruptura da paz social, eclosão de uma guerra civil latente. Mas esses 100 euros, prometeu Macron, não vão custar um euro a mais ao empregador. Admirável contradição: as instituições do Estado social, a que o neo-liberalismo sempre se opôs activamente, trabalhando para o seu enfraquecimento, são postas ao serviço de uma lógica governamental que as utiliza para iludir ao mesmo tempo dois riscos: os riscos da revolta e da politização dos trabalhadores e dos estratos mais precários da sociedade, por um lado, e o risco de provocar a hostilidade dos patrões e de afugentar as empresas.

Daqui decorre uma evidência: a teoria da sociedade do risco precisa de integrar nos seus cálculos e desenvolvimentos o risco que advém da redução dos privilégios concedidos aos grandes detentores dos meios de produção e de propriedade privada. Foi o que fez Emmanuel Macron, ao abolir as taxas suplementares sobre as grandes fortunas, medida que lhe valeu o epíteto de “Presidente dos ricos”. Aumentar o salário mínimo sem que isso custe um cêntimo aos patrões é um milagre de partilha neo-liberal: é transferir para o bolso dos pobres um montante “mínimo” que uma política fiscal e de segurança social acabará por lhes retirar, garantindo ao mesmo tempo a “assistência” às empresas, aos empregadores – a assistência que a “governamentalidade” neo-liberal promove através de um gigantesco transfert de rendimentos para os detentores de riqueza. Nesta revolta que tem posto algumas cidades francesas a ferro e fogo, vê-se bem como a pobreza é sempre relativa (como já Simmel tinha mostrado, num estudo de 1907 sobre os pobres). Por isso, quando hoje se fala do aumento da pobreza nunca se sabe bem do que se está a falar: da pobreza em termos absolutos ou da distância cada vez maior entre os que se situam nos pólos opostos quanto aos rendimentos que auferem? Uma sociedade rica, como é a francesa, origina uma nova pobreza, que tem a ver com carros e combustíveis. Esta pobreza é criada no interior de uma sociedade objectivamente rica, através de instrumentos políticos de divisão e de diferenciação. O regime político-económico em que vivemos, e para o qual não se vislumbra ainda saída que não seja sob a forma de catástrofe, não quer a redução – e muito menos a extinção – dessa pobreza, pela simples razão de que precisa dela para a sua forma de governar. Em suma: governa a partir dela, como se vê com toda a clareza mesmo no momento em que Macron declara solenemente à nação que percebeu a cólera dos revoltosos e tomou medidas para restabelecer a paz social. Pier Paolo Pasolini descreveu com uma fúria inaudita e um empenhamento político radical esta passagem política, sociológica e antropológica da velha pobreza - do povo que ele venerava - para uma nova pobreza, medida pelos parâmetros da classe média que representou para ele uma vil condição social e cultural, prenúncio de um fim do mundo. Mas o modo como Macron tem governado e como geriu agora as revoltas mostra uma coisa muito interessante que nem sempre é evidente: há um intervencionismo do Estado na construção do mercado que tem vindo a ser amplificado pelas políticas neo-liberais contemporâneas. Muito embora estas façam a pregação do mercado como sistema pretensamente auto-regulado. Isto foi muito bem descrito por Michel Foucault na sua análise do ordo-liberalismo alemão do pós-guerra. Ao Estado cabe estabelecer o equilíbrio tolerável na sociedade de risco – o risco duplo, que advém tanto da aproximação dos pobres em revolta, como do distanciamento dos ricos para outras paragens. Macron foi pouco prudente e não teve em conta todos esses riscos. Agora, sim, diz ele, percebeu-os bem. E o que significa para ele tê-los percebido? Significa utilizar de maneira cínica ou mesmo perversa as instituições do Estado-providência.

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