Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Volvidos 70 anos é oportuno perguntar, com todo o respeito por este património da humanidade, se a Declaração não merecerá uma “reforma”.

Em 10 de Dezembro de 1948 foi adoptada e proclamada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos “como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”. Contudo, Portugal só a adoptou em 1978, como bem lembrou Bárbara Reis (PÚBLICO de 30/11/18).

Volvidos 70 anos é oportuno perguntar, com todo o respeito por este património da humanidade, se a Declaração não merecerá uma “reforma”. Será que no presente ainda é eficaz ou já necessita de actualização? O presente texto pretende abordar esta questão após um breve enquadramento histórico assinalando a importância ética que a Declaração tem tido desde 1948.

No Preâmbulo da Carta de constituição das Nações Unidas (1945) declara-se que os povos saídos do flagelo da guerra, que por duas vezes tinha trazido sofrimentos indizíveis à humanidade, reafirmavam a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano. A Declaração, elaborada por uma comissão especial das Nações Unidas, veio precisar conceitos e direitos. Apesar de não obrigar legalmente os governos, a Declaração tem influenciado a ordem jurídico-constitucional em muitos países e induzido o desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos.

A Declaração não foi o primeiro documento a definir valores e direitos dos humanos. Há exemplos na Antiguidade, há a Declaração de Direitos (Inglaterra, 1689), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) ou a Carta de Direitos dos Estados Unidos (1791). Mas, após a tragédia mundial de 1939-45, com os seus horrores e violações extraordinárias de direitos humanos, a Declaração de 1948 trazia, entre outras, duas contribuições relevantes: era universal e salientava a dignidade humana como qualidade de referência a defender. Pretendia, assim, colocar-se num patamar supranacional, relativizando a soberania absoluta dos Estados e apontando para uma cidadania universal e digna. 

A declaração recupera o conceito muito antigo da dignidade, como um referencial ético e inerente a todos os membros da família humana, declarando que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (Artigo 1.º). Seguem-se os 29 artigos que definem um conjunto de direitos humanos fundamentais, nomeadamente a igualdade, a liberdade e o direito à vida, a justiça, a privacidade, o direito à propriedade, a democracia, o trabalho e o salário, os sindicatos, o repouso e o lazer, a segurança no desemprego, na doença e na velhice, a educação, a participação na vida cultural e científica e o desenvolvimento da personalidade, entre outros.

A declaração aborda, assim, um conjunto vasto de direitos e “constitui uma obrigação para os membros da comunidade internacional” (Conferência Internacional dos Direitos Humanos da ONU de 1968). Alguns dos aspectos abordados na Declaração têm sido detalhados em tratados ou convenções internacionais posteriores. No caso das pessoas idosas, a Resolução 46/91 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de Dezembro de 1991 adoptou um conjunto de princípios para as pessoas idosas abrangendo a independência, a participação, a assistência, a realização pessoal e a dignidade.

Com Hannah Arendt, pode-se afirmar que os direitos humanos não são um dado adquirido, são um processo de construção social. A leitura de alguns dos artigos da Declaração evidencia desajustamentos da experiência do presente e da previsão do futuro. A título de exemplo, atente-se ao Artigo 11.º: “Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.” Este direito está a ser cumprido na prática? É interiorizado pelos cidadãos, pelos órgãos de comunicação, pela sociedade?

A Declaração refere, no Artigo 25.º, o direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar saúde e bem-estar e a segurança por perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. Passados 70 anos, e mesmo aceitando o idealismo do documento, é forçoso reconhecer que permanece um hiato entre os direitos económicos fundamentais enunciados e a realidade do mundo e dos povos. Na organização do mundo, nomeadamente após a década de 70 do séc. XX, com o tipo de economia de mercado que se foi desenvolvendo, a Declaração parece ter deixado de ser tomada a sério nestes aspectos sociais. O cumprimento dos direitos de índole social e económico ou resultantes da organização da sociedade é ignorado ou é projectado para os limites indefinidos do futuro ou da sorte. Os mercados não se comprometem com direitos humanos e os Estados vão perdendo capacidade de intervenção.

Recorro ao escrito do papa Francisco em A Alegria do Evangelho (2013):

— “A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices acrescentados...”

— “Incomoda que se fale de ética, incomoda que se fale de solidariedade mundial, incomoda que se fale de distribuição dos bens, incomoda que se fale de defender os postos de trabalho.”

— “Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado.”

Poderíamos continuar a referir citações do Papa. Mas como criticar a indiferença relativamente a alguns artigos da Declaração de 1948, se no mundo cristão estas palavras de um papa não motivam reflexão ou consequências palpáveis decorridos cinco anos? 

Saliento um tipo de desafios que se levantam, no futuro, à Declaração Universal dos Direitos Humanos: o anúncio da “disrupção trans-humana ou pós-humana” em resultado da revolução digital, da robotização, da inteligência artificial e da biotecnologia (a notícia recente de uma manipulação genética em dois bebés constitui um alerta ético).

O confronto entre os direitos focados na pessoa humana, em que a pessoa é um fim em si e tem alguns direitos de privilégio ou de dignidade, e os novos entes que colocarão em causa valores e poderes, vai exigir uma nova regulação jurídica e ética. Desde já registamos a dificuldade na aplicação do Artigo 12.º da Declaração: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.” Estamos convictos que as Nações Unidas irão encarar os efeitos das novas tecnologias nos direitos humanos e na segurança da humanidade sem que tenha de ocorrer antes uma catástrofe, como foi o caso em 1948. Esperamos que o 10 de Dezembro de 2018 possa ser uma oportunidade para enaltecer a extraordinária relevância da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, para reler a Declaração e para reflectir no que poderá ser proposto para ajustar a Declaração aos próximos decénios.

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