Uma alegoria albanesa

Narrativa sobre a tirania, em que a forma de parábola serve a Kadaré para ensaiar uma releitura da História contemporânea.

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As histórias de Ismail Kadaré são quase sempre impregnadas de uma espécie de monotonia cómico-trágica

A obra do albanês Ismail Kadaré (n. 1936) — tem vários romances publicados em Portugal, entre os quais A Filha de Agamémnon e o Sucessor (D. Quixote, 2008) e Os Tambores da Chuva (Quetzal, 2012) — foi já distinguida com diversos prémios: entre outros, o Man Booker International Prize (2005) e o prémio Príncipe das Astúrias (2009). O seu nome é, desde há muito, repetidamente referido como um candidato ao prémio Nobel.

Ismail Kadaré — que durante uma visita a Paris, em 1990, pediu asilo político às autoridades francesas — é autor de romances (e algumas novelas) mordazes e irónicos e em que o destino mais parece um jogo de máscaras e de rumores. Não raramente tomou a antiguidade clássica (“o mito ilumina o labirinto”) — mas não só, também a História com alguns poucos séculos — como modelo narrativo e social, não apenas como uma tentativa dissimulada de escapar (à época em que escreveu os romances) à censura da ditadura de Enver Hoxha, mas também para assim melhor analisar as maneiras de funcionamento dos mecanismos do poder e como este quase se auto-alimenta. Os seus romances assentam sempre — como aliás toda a grande literatura — na profundidade interior das suas personagens. As histórias de Ismail Kadaré, quase sempre impregnadas de uma espécie de monotonia cómico-trágica, ora tomam a forma de parábola sobre a tirania ora ensaiam uma releitura da História contemporânea (não apenas da Albânia mas também de outros países que viveram sob o jugo estalinista); na sua escrita, sempre soberba e irónica, ele parece querer encontrar — se é que tal é possível — um qualquer vestígio de sentido naquele mar de demência que é tão característico dos estados totalitários.

Em O Nicho da Vergonha (originalmente publicado em 1978), Ismail Kadaré, mais uma vez, serve-se da História do Império Otomano, do qual a Albânia fez parte durante séculos, governada por tiranos Pachás rebeldes que se revoltavam contra o Sultão da capital. Depois da Segunda Guerra Mundial, essa mesma Albânia passou a ter um ditador estalinista, Enver Hoxha, que a governou mas desligado da União Soviética. O paralelismo histórico está feito.

O nicho da vergonha é uma cavidade aberta na pedra, numa parede na grande praça da capital do Império Otomano, no livro chama-lhe Istambul (note-se o anacronismo do nome). Naquele nicho são expostas, numa bandeja com gelo, mel e sal, “as cabeças cortadas dos vizires rebeldes”, dos inimigos derrotados, ou então dos dignitários do Império “caídos em desgraça”. No ano em que a acção decorre (cerca de 1820), os transeuntes da praça esperam no nicho a cabeça de Ali Pachá de Tepelena, um governador rebelde que num recanto longínquo do Império, na Albânia (“a antiga terra das peocupações”), declarou guerra ao sultão. Entretanto, foram as cabeças dos generais turcos, os que não os conseguiam vencer, que se foram sucedendo no nicho, também conhecido como “castigo da ignomínia” e “pedra da abominação”. Quando a rebelião começou, e antes de serem enviados soldados, tinham sido mandados funcionários dos Arquivos Centrais do Estado, especialistas que, seguindo a antiga doutrina, prepararam “grandes estudos” sobre as “formas de suprimir a memória nacional”, que incluía também o processo de “supressão da língua” — até só já restar nas velhas mulheres, as que a guardavam como se fossem “urnas antigas”.

Usando esta fábula alegórica sobre a tirania — e também sobre os caminhos labirínticos que a natureza humana percorre para se adaptar ao poder repressivo de um Estado — Kadaré denuncia os antigos e novos mecanismos de opressão. No caso desta parábola, são as cabeças cortadas o que parece manter o Império, o que o une na sua vasta solidão. Ao longo da história narrada, e sobretudo quando é referida a praça da capital, há algo de estranho: a praça tem turistas, muitos turistas, e outras particularidades inesperadas para o século XIX. É este propositado e talentoso toque de anacronismo (não lhe chama Constantinopla), ou de algo surreal para o leitor, o que lhe oferece o tom de fábula, que declara a história contada como uma metáfora política.

Talvez pelo recurso a cenários históricos orientais, e por existir algum paralelismo político entre os seus países, este romance de Ismail Kadaré traz à memória alguns livros do escritor sérvio Ivo Andric, autor, entre outros, de A Ponte sobre o Drina e de A Crónica de Travnik.

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