Na luta contra a esclerose múltipla, "tempo é cérebro"
Assinala-se nesta terça-feira o Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla. O PÚBLICO falou com um neurologista sobre uma doença que afecta cerca de 6000 pessoas em Portugal.
“O primeiro surto surgiu em 2008. Acordei e tinha a visão turva. O que associei a uma remela, era afinal uma inflamação do nervo óptico.” Délcio tem 38 anos e há dez que vive com esclerose múltipla. É uma das seis a oito mil pessoas com a doença em Portugal.
Foi uma simples “remela” que o levou a procurar ajuda médica, conta ao PÚBLICO. O diagnóstico foi esclerose múltipla sob a forma secundária progressiva, uma doença crónica e inflamatória, com uma componente degenerativa associada, que afecta vários locais do sistema nervoso central. Esta é considerada a segunda causa de incapacidade neurológica, entre os 20 e os 40 anos, sendo só ultrapassada pelos acidentes de viação.
Já no caso de Telma, os sintomas não foram tão óbvios: “O primeiro surto surgiu em 2015, 48 horas após o nascimento da minha filha. Fiquei a rastejar das duas pernas, parecia que se desencaixavam das ancas. Andei assim dois meses.” O que na altura foi associado pelos médicos às dificuldades do parto e aos efeitos da anestesia epidural era, afinal, o primeiro sintoma. Aos 33 anos, Telma recebeu o diagnóstico: esclerose múltipla.
O quotidiano de Délcio é hoje mais limitado — movimenta-se numa cadeira de rodas. Telma, que tem a forma surto-remissão da doença, consegue ter uma vida mais activa e até fazer desporto. Aliás, diz: "Comecei a viver depois de ter esclerose múltipla".
Segundo a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), o diagnóstico da doença é mais frequente por volta dos 30 anos, mas também pode surgir em crianças e idosos.
A Organização Mundial de Saúde estima que, a nível global, 2,5 milhões de pessoas tenham esclerose múltipla. O neurologista Carlos Capela, do Centro Hospitalar de Lisboa Central e do Hospital dos Capuchos, sublinha o impacto social da doença e aponta dados europeus de 2005 e 2006 que indicam que entre 60% a 80% dos doentes perdem o seu trabalho 15 anos após o diagnóstico, e que 35% se reformam antecipadamente entre os 45 e os 55 anos.
Que factores motivam o aparecimento da esclerose múltipla?
Não se sabe as causas. É uma doença idiopática, ou seja, desconhecida. Mas a comunidade científica considera que seja multifactorial. Frequentemente, os factores de risco são sistematizados em factores de risco genético (por exemplo, genes do sistema imune que predispõem para a doença auto-imune) e de risco ambiental (baixos níveis de vitamina D, tabagismo e infecções provocadas pelo contacto com alguns vírus, em especial o Epstein-Barr). Em alguns grupos de doentes predominam os factores de risco genético, quando vários familiares de primeiro grau são afectados pela doença. Mas, na grande maioria, é a conjugação dos factores de risco genético com os ambientais a grande causa.
Como se manifesta a doença?
Em mais de 80% dos casos, o curso clínico da esclerose múltipla é tipificado por uma fase inflamatória, caracterizada por surtos e remissão. Um surto é um episódio neurológico sub-agudo, ou seja, leva entre horas a dias. Por exemplo, a falta de visão do olho é um episódio muito comum. O nervo óptico é um daqueles locais do sistema nervoso central que a doença pode afectar. Temos um surto de nevrite óptica que se vai instalar ao longo de horas e dias, e que, depois disso, vai ter uma recuperação progressiva e cuja extensão é variável de doente para doente, e pode recuperar total ou parcialmente.
Em média, estes surtos ocorrem um em cada dois anos. Com a terapêutica, aumentamos a probabilidade de não haver surtos e a distância temporal entre eles. Entre os surtos, a grande maioria dos doentes pode permanecer estável, ou seja, ter recuperado totalmente ou então ter acumulado alguma incapacidade do surto prévio. Após alguns anos da doença, normalmente a partir dos 10 anos, este padrão muda: diminuem os surtos mas há progressão constante e lenta da incapacidade. É a fase neurodegenerativa, designada por esclerose múltipla secundária progressiva (EMSP). E nesta, não possuímos ainda terapêuticas suficientemente eficazes.
Por último, existe uma minoria de doentes, cerca de 10%, que não têm surto mas progridem muito lentamente ao longo de anos na incapacidade. Temos doentes nas consultas que foram experienciando ao longo de dois, três, quatro anos o aumento do desequilíbrio ou aumento da fraqueza muscular dos membros inferiores. É uma coisa lenta, que se vai instalando e só quando o doente tem uma incapacidade que já lhe dificulta as actividades diárias é que procura o médico.
Esta forma, a esclerose múltipla primária progressiva, só muito recentemente recebeu o primeiro fármaco modificador da doença, aprovado pela Agência Europeia do Medicamento. Os medicamentos disponíveis são sobretudo para as formas inflamatórias da doença.
Como é feito o diagnóstico da esclerose múltipla?
Baseia-se num princípio em que essas lesões inflamatórias do sistema nervoso central devem cumprir com o “múltipla”. Temos de mostrar que existem diferentes áreas afectadas do sistema nervoso central — com uma ressonância magnética, por exemplo — e temos de provar que haja disseminação no tempo, ou seja, diferentes lesões em diferentes tempos e em diferentes locais. Se a ressonância mostrar lesões no cérebro, no cerebelo, na medula, e, se uma dessas lesões for aguda, podemos dizer que a pessoa tem esclerose múltipla porque há poucas doenças com esta apresentação, ou seja, que afectem em vários locais e em vários tempos o sistema nervoso central.
Também a própria punção lombar pode mostrar se existe uma inflamação crónica dentro do sistema nervoso central, portanto ajuda-nos num dos critérios do diagnóstico que é a disseminação no tempo, para além de nos auxiliar na exclusão de outras doenças do sistema nervoso central.
O diagnóstico precoce é importante?
Quanto mais cedo for realizado o diagnóstico, melhor será o prognóstico. Porque estamos a poupar cérebro — “time is brain” [tempo é cérebro] — e se pouparmos cérebro, poupamos sequelas.
É possível traçar um retrato dos principais grupos afectados pela doença?
Afecta sobretudo adultos jovens entre a segunda e a quarta década de vida. Em Portugal, o número varia entre os 5600 e os 8 mil, e a nível mundial acredita-se que sejam 2,5 milhões de pessoas. É uma doença mais prevalente na população europeia caucasiana, e o gradiente de latitude também tem um grande impacto nesta patologia. Um país do Norte da Europa vai ter uma maior prevalência de esclerose múltipla do que um país no Sul da Europa.
Por que é que é mais frequente nas mulheres?
Como em todas as doenças auto-imunes, as mulheres são as mais afectadas. Isto porque as hormonas da mulher facilitam, regra geral, a existência dessas doenças. Ao homem, a hormona masculina protege-os mais. Na esclerose múltipla, o rácio é de 66% de mulheres e 33% de homens. Isto é o que vemos nas consultas e o que indicam as bases de dados.
Existem outros tipos de acompanhamento para um doente com esclerose múltipla, além do neurologista?
Precisa de uma abordagem multidisciplinar. Um doente com uma incapacidade ligeira vai manter-se na esfera da neurologia, mas quando aumenta a incapacidade aí já são necessários oftalmologistas, urologistas e fisiatras para as questões da espasticidade e da reabilitação. A questão emocional também é importante, porque quer no início, com a questão do diagnóstico, quer quando a incapacidade começa a aumentar, os doentes precisam de apoio psicológico ou psiquiátrico.
E repercussões para o doente a nível social?
Depende da incapacidade. Se for tratada desde cedo, quando se impede que a pessoa tenha muita incapacidade, as limitações sociais, familiares e profissionais têm pouco impacto. Já um doente que tenha mais incapacidade vai sofrer a nível social e profissional, inclusive na empregabilidade. Na Europa, e de acordo com dados europeus que datam entre 2005 e 2006, cerca de 15 anos após o início da doença 60% a 80% dos doentes perdem o trabalho e 35% reformam-se antecipadamente, entre os 45 e os 55 anos. Ou seja, há aqui uma relação entre o aumento da incapacidade e a taxa de desemprego. Mas a realidade terapêutica é hoje muito diferente. É possível controlar a actividade de um doente muito activo, para que não fique com incapacidade, e dessa forma não sofra com este tipo de problemas.