As drogas já não são o que eram?

As drogas nunca estiveram tão acessíveis e nunca existiram tantas diferentes no mercado — de acordo com dados do Observatório Europeu das Drogas a cada ano surgem mais de 100 novas substâncias psicoactivas. O Global Drug Survey está de volta e quer saber como está a situação de drogas em Portugal e no mundo.

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Se há expressão que quase toda a gente usa a propósito de quase tudo é “antigamente é que era” e as drogas aqui não são excepção. Antes é que a ganza batia, os ácidos duravam três dias, as pastilhas não davam estrica. Em certa medida as pessoas que o dizem têm razão, efectivamente o mercado das drogas sempre foi dado a mudanças e nunca mudou tanto como nos últimos anos.

As drogas nunca estiveram tão acessíveis e nunca existiram tantas diferentes no mercado — de acordo com dados do Observatório Europeu das Drogas a cada ano surgem mais de 100 novas substâncias psicoactivas. Com toda esta diversidade nunca o grau de incerteza e consequentemente de risco foi tão grande para as pessoas que consomem. 

Na darknet, um espaço não indexado da Internet, facilmente se encomenda de forma anónima todo o tipo de substâncias legais e ilegais, sintéticas e naturais: pós, ervas, papéis, gotas, micropontos, sprays nasais, supositórios, no fundo, o que existir facilmente se arranja por lá. Uma panóplia de novos estimulantes, depressores e psicadélicos apareceram no mercado, alguns com efeitos muito específicos, como o DiPT, uma molécula que apesar de ser considerada um psicadélico provoca essencialmente distorções auditivas. O advento da Internet não se limitou a facilitar acesso às drogas, impulsionou também o faça-você-mesmo-as-suas-drogas. Tornou possível que pessoas à partida com pouco conhecimento técnico possam cultivar, fazer extractos vegetais e purificações de todo o tipo de cogumelos e plantas que até há pouco tempo cresciam escondidos na floresta. Algumas comunidades online (leia-se fóruns) promovem crowdfundings (financiamentos colectivos) para testar as drogas de um certo vendedor online e denunciar a qualidade dos seus produtos ou reúnem esforços para identificar novas moléculas de uma planta psicoactiva recentemente descoberta. A Internet permitiu que pessoas com interesse por drogas se organizassem para produzir e partilhar informação que lhes seja útil. 

Mas isto são pequenas comunidades, a maioria das pessoas que consome drogas continua a procurar cannabis, MDMA, um ácido quando o rei faz anos. Dão umas passas num charro ao fim do dia para relaxar, tomam uma pastilha ou cheiram uma linha de coca ao sábado para curtir um som. Só que também estas drogas mudaram.

Nos anos 70 facilmente se encontravam selos de LSD com 200 microgramas, ou seja, doses tão altas que provocam experiências intensas que não permitem socialização e requerem um set (preparação da pessoa) e setting (ambiente calmo e controlado) para a experiência chegar a bom porto. Hoje em dia, a média da dose que se encontra no LSD é cerca de 50-75 microgramas, o que diminuiu a probabilidade de as pessoas terem más experiências mesmo em ambientes cheios de estímulos como discotecas ou festivais de verão. Por outro lado, pela primeira vez em décadas encontraram-se adulterantes nos selos de LSD, substâncias potencialmente mais perigosas que o LSD.

No que toca ao MDMA (ecstasy), há cinco, dez ou 20 anos uma pastilha tinha em média cerca de 50-70 mg de MDMA. Nos últimos tempos encontram-se amiúde pastilhas com 150-200 mg e até mais de MDMA. Esta variação brusca no mercado tem tido consequências fatais para muitas pessoas, mesmo aquelas que estão habituadas a consumir e que já determinaram qual seria a dose indicada para si, pois facilmente uma pastilha pode ter uma dose muito mais elevada do que aquela que estavam à espera.

A cannabis também variou muito nas últimas décadas. O facto de hoje em dia muitos/as produtores/as recorrerem a sistemas de rega automática, fertilizantes especializados, iluminação controlada e especialmente sementes geneticamente modificadas trouxe para o mercado novas ervas que nunca existiram. Os dois principais componentes da cannabis, o THC e CBD, complementam-se no efeito psicoactivo. O THC é o que mais contribui para produzir a sensação de um estado alterado, mas é a sua combinação com o CBD que provoca a sensação de relaxamento e de bem-estar que nos fazem rir com os nossos/as amigos/as. Contudo, é cada vez mais frequente encontrarmos no mercado ervas com uma concentração de THC elevada e de CBD baixa. Embora este tipo de produtos possa ter algumas aplicações terapêuticas interessantes, na generalidade das pessoas podem provocar ansiedade, ataques de pânico e paranóia quando fumados ou ingeridos. É normal que muitas pessoas se sintam nostálgicas pela erva de antigamente, mais propícia à gargalhada fácil e ao relaxamento. 

O mercado dos opióides (substâncias como a morfina e a heroína) também sofreu alterações preocupantes com o aparecimento de substâncias como o fentanilo e os seus derivados que podem ser cerca de 100 vezes mais potentes que a morfina. Só em 2017 morreram mais de 70 mil pessoas nos EUA devido ao consumo de opiáceos (um número maior que as mortes do lado americano durante a guerra do Vietname). Quase metade destas mortes estão relacionadas com consumo de derivados do fentanilo – que é uma substância totalmente sintética, não dependente de plantações de papoila como outros opióides e muito potente, sendo por isso muito mais lucrativa para quem produz. 

Os governos proíbem as drogas e os mercados ilegais acabam por se regular sozinhos, não existindo nenhuma entidade governamental que controle a produção e distribuição destas substâncias à semelhança do que acontece com os medicamentos ou os produtos alimentares que consumimos. 

Grande parte da (boa) informação que está disponível sobre drogas surge do esforço e da organização de várias entidades da sociedade civil que tentam servir os interesses das pessoas, de forma pragmática e não moralista. Há associações como a Kosmicare, de que somos membros fundadores, a promover serviços de redução de riscos e drug checking que possibilitam às pessoas analisar as suas substâncias e obterem informação objectiva e adequada à sua circunstância de maneira a poderem tomar decisões baseadas na evidência científica. Só assim as pessoas que consomem drogas podem gerir o melhor possível os seus consumos, minimizando os riscos que estes implicam e maximizando os prazeres.

Mas para produzir boa informação é necessário investigar e desta forma, mais uma vez, a Kosmicare associa-se ao Global Drug Survey (GDS), o maior questionário anual sobre drogas, para podermos saber como está a situação de drogas em Portugal e no mundo. Com a informação que recolhemos através do GDS investigamos questões como padrões de consumo de drogas, estratégias de redução de risco e consequências para a saúde. Fazemos estudos comparativos usando dados dos anos anteriores de maneira a estabelecer alterações nos padrões de consumo e detectar novas tendências. Temos uma abordagem aberta, honesta e transparente sobre o uso de droga.

Ao participares (encontra aqui o questionário) estás a contribuir para aumentar o conhecimento na área das drogas e ajudar lutar pela promoção de políticas que respondam às necessidades das pessoas. Com a informação obtida através do GDS até agora foi possível criar uma série de recursos gratuitos de redução de riscos que ajudam quem consome álcool e/ou outras drogas a fazê-lo com maior segurança, como o Highway Code e o Drugs Meter. Se o preenchimento do questionário te fizer pensar mais profundamente sobre o teu consumo e quiseres falar sobre isso, contacta a Kosmicare.

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