Paris está cheio de fantasmas

Mais uma vez, Modiano recorre a personagens frágeis, solitárias e etéreas, que deixa a pairar numa cartografia parisiense nostálgica e romântica.

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Há neste livro, como em outros de Mondiano, uma vontade introspectiva clara

Lembranças Adormecidas é o primeiro livro do francês Patrick Modiano (n. 1945) publicado depois de lhe ter sido atribuído o Nobel da literatura em 2014. Nele um narrador — com cerca de vinte anos de idade, à época — vai evocando memórias de mulheres que cruzaram a sua vida na Paris dos anos 1960 — um “tempo de encontros”, quando “o velho mundo sustinha, pela última vez, a respiração, antes de se desmoronar”. Mais uma vez — aliás como em toda a sua obra — Modiano recorre a uma cartografia parisiense muito precisa, nostálgica e romântica, etérea e eterna, com pormenores topográficos quase sempre enumerados com uma minúcia quase obsessiva. São nomes de ruas, de avenidas, de praças, de cais, de cafés de bairro, de pontes, de pequenos hotéis, de estações de metro, que surgem envoltos numa tristeza melancólica evocada pela nostalgia que atravessa toda a narrativa.

A meia dúzia de mulheres evocadas, a sua errância com o narrador por uma Paris desaparecida, o seu destino quase sempre obscuro, serve a Modiano para fazer mais um exercício de busca de um tempo perdido. Visita ruínas guardadas na sua memória, restos de onde emergem fragmentos como se fossem saindo de uma brecha que ele abre a custo no tempo. A partir de um nome que lhe surge da desordem das lembranças, aparece logo outro, ou frases muito breves, que depois, como se fossem ímanes, atraem mais frases que se encadeiam para formar parágrafos, mais um pedaço de uma história incompleta. Sinais que dão acesso a um caminho oculto, ao “não dito”. A escrita como uma revisitação contínua de fantasmas, que muitos anos depois voltam à superfície como afogados: “Paris, para mim, está juncada de fantasmas, tão numerosos como as estações do metro”. De capítulo em capítulo, o autor vai traçando e entrecruzando retratos caleidoscópicos de personagens um pouco perdidas e em contínua demanda de si próprias. De certa forma, são todas personagens frágeis, solitárias e desenraizadas, que buscam a sua identidade — tal como o narrador, que se confunde biograficamente com Modiano — remexendo numa espécie de “matéria escura” (a expressão é do próprio, no romance O Horizonte) feita de possibilidades passadas que, por uma ou por outra razão, nunca chegaram a acontecer. Como se as acções que não aconteceram e as palavras que nunca foram ditas, as daqueles anos, ficassem a pairar no fundo de um qualquer abismo e coubesse ao autor ir lá ouvir os seus ecos e assim fazê-las finalmente viver.

Em Lembranças Adormecidas o narrador convoca e reinventa livros, objectos antigos, cenas de um passado com algo de mistério mas também de ilegitimidade, fá-lo como o “espectador nocturno” que foi naquele tempo e que se interroga se tornasse a ver aquelas mulheres, se elas fariam a ligação entre aquilo em que hoje se tornou “e a imagem esbatida que conservam de um jovem cujo nome não poderiam dizer sequer”. Há neste livro, como em outros do autor, uma vontade introspectiva clara: “eu que estava habituado desde a infância aos desaparecimentos (…) gostaria de perceber porque é que a fuga era, de alguma forma, o meu modo de vida”. Para isso ele recorre a elementos biográficos soltos, numa tentativa (irremediavelmente vã) de preencher o puzzle.

O passado, ou o presente, sempre obscuros das personagens de Modiano, leva-as a tentarem refugiar-se umas nas outras, e também no narrador, a actuarem como se vivessem continuamente uma espécie de vida paralela, em que cada acto ou movimento é mais um ponto para a ténue teia (sempre incompleta) que se vai desenhando diante do leitor. Neste livro, como que para sublinhar este lado, há também a história de um crime: uma mulher matara um homem “por acidente” e o narrador vê-se envolvido no caso, escapam os dois para um hotel. Um morto que ambos esquecem. Ele conta a história cinquenta anos depois, acreditando que, como na vida, o tempo na justiça também prescreve. “À medida que os anos passam, acabamos provavelmente por nos livrar de todos os pesos que arrastávamos atrás de nós e de todos os remorsos.”

De uma certa forma, Lembranças Adormecidas pode ser lido como algo perto de um “testamento literário” a que juntou um maior cuidado romântico, porque condensa o que Patrick Modiano deixou espalhado pela sua obra ao longo de algumas décadas: uma luta contra o esquecimento, um sublinhar dos caminhos redentores da memória e da ficção.

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