Na pele do árbitro

Nesta segunda-feira vou convidar-vos a vestir a pele do árbitro, para perceberem como pensa e age em pleno jogo, debaixo da pressão, do limite do tempo e da obrigatoriedade de decidir de forma célere. Vou socorrer-me de dois lances desta jornada, para que percebam quais são os motivos, as razões, os factos, os indícios e o contexto que o levam a decidir num determinado sentido, independentemente da decisão correcta ou não que toma.

No jogo Sporting-Desp. Chaves, provavelmente o caso do jogo, é o penálti assinalado aos 84 minutos, num lance que envolveu William e Bas Dost. O jogo está empatado a seis minutos do fim do tempo regulamentar e o Desp. Chaves reduzido a dez elementos. Este é o contexto e vai ser executado um pontapé de canto a favor dos “leões”. O árbitro olha para os emparelhamentos e respectivas marcações na área, onde a bola vai, com certeza, cair, e percebe que William está a agarrar Bas Dost de forma persistente e, como tal, quer ser proactivo e evitar que o jogador flaviense mantenha essa postura, pois isso iria traduzir-se num penálti. Como tal, apita, e impede e retarda a execução do canto, chama os jogadores, adverte-os verbalmente, avisa-os para não se agarrarem, diz inclusive que assinala penálti se persistirem.

Os jogadores ouvem, largam-se, o árbitro verifica que está tudo ok, apita forte, manda executar o canto, mas obviamente que mantém o olhar em William e também em Bas Dost, pois sabe que, por razões tácticas, é para ele que a bola vai ser enviada. A bola descreve a sua trajectória e vai cair onde está o avançado “leonino”. O árbitro mantém o olhar nessa dupla (William-Bas Dost) e aquilo que vê em tempo real, sem repetições e tendo que decidir de imediato, é o braço esquerdo de William a envolver a cintura de Bas Dost. Depois, a partir daqui, é o critério e a interpretação: se o agarrar foi suficiente para impedir a movimentação, se o agarrar impede o holandês de chegar à bola, se tem a intensidade suficiente para ser considerado falta. Mas o que ele vê, o que é factual e real, é o braço na cintura, é o agarrão. O que ele interpreta, é conhecimento da lei, aptidão, competência, decisão. Por isso, não é “escandaloso” assinalar penálti tal como não seria se o não fizesse.

O videoárbitro está amarrado num protocolo, que diz que só pode intervir em caso de erro claro e óbvio, como tal este lance não se enquadra naquilo que é a sua possibilidade de acção. Esta é a perspectiva do árbitro, seria a minha se lá estivesse no terreno de jogo. O que eu penso e acho sobre o lance, sentado no sofá, com mil repetições e todo o tempo do mundo, é outra coisa, bem mais fácil, bem mais confortável, e que se traduz na minha opinião pública: para mim não estavam reunidas as condições efectivas para ser assinalado pontapé de penálti.

Segundo caso de jogo, Tondela-Benfica, minuto 53, num lance que envolve Cervi e David Bruno e que resulta na expulsão por acumulação de amarelos do jogador tondelense. O contexto é este, ambos os jogadores estavam “picados” de um lance anterior ocorrido junto à linha lateral, a bola é metida em profundidade, David Bruno com o braço empurra nas costas Cervi, o árbitro acaba, acto contínuo, por interromper o jogo, assinalando uma falta atacante.

O jogo fica interrompido durante alguns segundos, alguns jogadores envolvem-se em conversas mais acesas, mas está tudo aparentemente controlado, e o que faz David neste tempo de paragem, leva a bola com ele na mão, depois larga-a, depois fala e discute com diversos jogadores, o capitão da sua equipa ainda vai ter com ele, tira-o da zona, fala com ele, parece que está tudo sanado. David Bruno vai para o seu meio-campo mas, entretanto, regressa, dirige-se a Cervi, ficamos com a ideia e o árbitro também, que ele se aproxima para pedir desculpa, mas eis que com a sua mão tem dois gestos, duas atitudes, dois comportamentos antidesportivos, na cara e na nuca do jogador do Benfica.

O árbitro está de frente, desloca-se para ele, não hesita e pune esta situação com o cartão amarelo. Nada a dizer, o jogador é expulso, a equipa fica com menos um e daqui para a frente tudo se torna diferente, o jogo e o resultado.

O árbitro à luz da lei agiu bem, mas mesmo assim é criticado, assobiado, nas intervenções pós jogo. Fica no ar que foi o árbitro que decidiu mal, que alterou o jogo. O videoárbitro nada pode fazer, de acordo com o protocolo, para lances desta natureza, pois só pode intervir em situações de vermelho directo, nunca em amarelos, mesmo que seja o segundo.

Para mim, e uma vez mais, sem pressão e com todo o tempo do mundo para ver, rever e pensar, ficam três notas; a decisão é correcta e inatacável. Alguém, colega de David no terreno de jogo e naquele momento poderia e deveria ter tirado desde o primeiro instante o seu colega daquela situação, levá-lo para o meio-campo, para longe de Cervi, e que ser árbitro é também ser proactivo e sabendo como os jogadores “fervem em pouca água”, poderia e deveria, nestas circunstâncias, de alguma forma, impedir que se chegasse àquela situação final, por isso é que sempre achei que quanto menos interrupções houver e menos faltas se assinalar, menos tempo têm os jogadores para estarem parados e envolvidos em conflitos.

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