Grécia: o ardor da própria luz

João Miguel Fernandes Jorge regressa à Grécia. Uma revisitação nunca servil, mas que faz um leitura dinâmica e abrangente daquele território simbólico: matriz cultural e complexo mapa.

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Os poemas de João Miguel Fernandes Jorge não estão dispostos a render homenagens ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

Este livro abre com uma tríade de imagens que fixam a nossa atenção numa Grécia mais ampla do que a de um período áureo, ou de alguns aspectos mais fulgentes de uma civilização — “Na manhã, em direcção ao/ rio: o pedagogo, o escravo/ o amigo.” (p.11) Porque este triângulo revela, desde logo, facetas que pertencem à legenda, ao domínio do símbolo, embora representem aspectos muito concretos do mundo clássico. A servidão do pedagogo, a philia, são emblemas de uma cultura, matriz que a poesia de João Miguel Fernandes Jorge desde sempre conhece e interpela. Não nos esqueçamos de que a epígrafe inicial do seu primeiro livro, Sob Sobre Voz (in Obra Poética, vol.1, Presença, 1987), é retirada da Ética a Nicómaco, “uma paixão ao tempo deste livro”, conforme nota do autor. Eis, portanto, o “quadro” de um mundo, o clássico, actualizado, ao longo deste novo livro, na imagem multímoda de uma Grécia trans-histórica, mas cuja base matricial se mantém. É frequentemente à Grécia arcaica e clássica que regressaremos, nas páginas deste livro. No entanto, o título deve servir-nos de instrumento de temperança e de possível aviso. A rotação no idioma, o impropério, a violência, serão valores importantes. A eles voltaremos.

Fuck the polis retém, repete e encena certos gestos que funcionam como repercussões de uma emissão iniciada na noite dos tempos. São cânones que estes poemas trazem para a sua própria verdade textual do século XXI — “Afastou-se para o altar/ nos confins/ da cidade. Ergueu a taça/ murmurou a libação// o vinho, o sangue do sacrifício/ torvaram a terra seca de cardos.” (p.12) O ritualismo que estes versos firmam afasta-se decisivamente de uma erudição seca e que a si mesma se bastasse. Como sempre sucede com a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, o conhecimento, a informação, não são mais do que rios que correm sob o solo, indícios nunca impositivos. Se quiséssemos encontrar uma analogia, poderíamos dizer que esses pressupostos, naturalmente importantes na poética de João Miguel Fernandes Jorge, não são da ordem do monumento exposto aos olhares mais indiscretos e distraídos, mas assemelham-se a uma cripta a que se chegasse depois de muito sondar terreno inexplorado. Quase se poderiam tomar para a poesia de João Miguel Fernandes Jorge as palavras que um dos poemas deste livro dedica ao “Diadoumenos de Delos”: “Queria o que/ oculta em si a arte, o conhecimento. O não sentir o/ tempo, o mais desejado.” (p.33) A poesia de João Miguel Fernandes Jorge tem essa capacidade difícil de isolar e que consiste em dar e retirar do mesmo golpe. De revelar deixando sempre ocultos segmentos determinantes do que o poema toca — ou tudo o que é por ele tocado.

A Grécia nunca deixa de ser percebida — ou questionada — como complexo território na sua História e nos fluxos que nele se cruzam. Mosaico de laborioso encaixe, a História grega é, por vezes, surpreendida por estes poemas de um modo quase furtivo — “Não sei,/ pensei nele como alguém vindo da/ cidade de Parga, para mim/ imaginária, até ao dia em que/ numa estreita rua de Atenas,/ num desolado prédio, uma placa/ referia o andar onde se guardam os/ seus arquivos. Cidade-estado até/ quase finais do século dezoito, sob/ a protecção do czar da Rússia, recebia/ conforme o domínio do dinheiro/ venezianos, turcos, gregos.” (p.27) Nestes versos congregam-se alguns aspectos importantes na poesia de João Miguel Fernandes Jorge. A História engasta-se na história. O que é facto e ciência integra a liberdade imaginativa do poema, no que este tem de certa narrativa. Porque a reinvenção (mais do que a recriação) do histórico é, para este poeta, um fuso em torno do qual muito se pode fiar. De resto, os versos que se seguem, no poema citado, reforçam essa ideia — “Parga,// no Epiro,/ bem poderia ser a sua pátria.” (id.) Talvez não andem distantes destas disposições as palavras de Aristóteles na Poética: “a função do poeta não é contar o que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer” (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, trad. Ana Maria Valente). Ao imaginar Paulo de Tarso na Biblioteca de Celsius no poema com o nome desse local de recolhido estudo onde em que o Apóstolo trabalhou, João Miguel Fernandes Jorge une dois fios essenciais: a religião e o pensamento gregos entrelaçados com o cristianismo primitivo — “as fundações sustentam o logos de/ Heraclito e de João” (p.17). Ao evocar as presenças do Evangelista e do Obscuro, JMFJ sintetiza duas acepções do logos atravessadas pela “personagem principal” de Paulo, neste poema que faz do esquema narrativo uma possibilidade de navegar nas vagas bem mais cativantes do que “poderia ter sido”.

Esta poesia promove sempre uma adesão que nunca deixa de conter uma certa dose de insatisfeita recusa. Porque os poemas de João Miguel Fernandes Jorge não estão dispostos a render homenagens. Motivo pelo qual um dos que se acolhem em Fuck the Polis fala de “um sempre de museu” (p.26). O maravilhamento em face do belo e do clássico nunca impede a estranheza, a atenta desconfiança de quem escreve, diante da possibilidade de cristalização e enrijecimento do que devia ser maleável e fluir — “Oval perfeita a cabeça/ inclinada para — quem sabe? — o/ insólito de poder viver milénios” (p.32). Esta poesia não é, felizmente, um exemplo de devoção fechada sobre si mesma, ou que elevasse os seus objectos à triste categoria de altares, mas um caso de partilha e discreta confidência. O que consegue, por exemplo, quando não abdica da lucidez de anotar o “insólito” que há em contrariar, num museu, a tendência para a ruína.

A Grécia é, nestes poemas, uma noção ampla que transcende épocas e interpela diferentes eras, sem enjeitar o nosso próprio tempo. Vários momentos, no curso do livro, conduzem, subtilmente, a essa constatação — “O príncipe move-se, além dos milénios” (p.54); “tudo se repete/ tudo recomeça” (p.55). Sem um roteiro linear, nem uma progressão definida, os poemas deste livro aproximam-se do nosso tempo. Não exclusivamente em função da perenidade da lição grega, mas porque a Grécia vai sendo concebida como origem, transição e sobrevivência no presente — “de que vale pedir perdão” (p.63), reflecte um poema chamado “O Imperador Teodósio”, mas que talvez tenha algo a dizer sobre o temporal e o espiritual nos nossos próprios dias. E sobre os actos que, de tão rituais, perdem força: como o pedido de perdão.

É como se, ao longo de Fuck the Polis, João Miguel Fernandes Jorge fosse sentindo a necessidade de criar barreiras, contrapontos a qualquer possível hieratismo que pudesse resultar da contemplação do legado clássico, da sua vibrante sobrevivência no presente — “Quando ele lança o berlinde — matador — que é o seu,/ agresteado por uma unha de sangue// perdura o espaço vazio, poeirento, soalheiro.” (p.16) São passos em que o poema, mais e mais, se afasta de qualquer solenidade, dando claro realce a elementos “desenobrecidos”, como um jogo infantil, ou um pormenor que merece um enérgico impulso metafórico em que o sangue inculca uma inesperada presença cromática e textural. Esse movimento de atenuação da “altura” a que ascende o assunto Grécia — como foco histórico e matriz cultural — conhece um admirável momento de síntese no último poema do livro: Rua DoménikosTheotokopoulos — “a cintar todas as casas, ao modo de/ um fosso, a Rua de Minos abre singela/ passagem para o bairro das Luzes/ Vermelhas/ Alexia, Anna e também Maria/ aguardam nas suas casinhas de prazer/ fantasias de qualquer realista —/ na parede, a negro — fuck the polis” (p.65) Na sua sintaxe liberta e errática, na expressão elíptica de algumas das suas ligações, estes versos configuram uma dispersão final. Um gesto de corte que todo o livro, muito sub-repticiamente, fora preparando. A consideração atenta da marca clássica nunca travara a intromissão de novas vagas do tempo em constante renovação. Esta concepção é uma das mais fortes deste livro. A de que o legado antigo é demasiado forte para não resistir ao impacto de uma pichação. Mas também que não é depondo o clássico num pedestal que ele se deixa proteger do avanço das eras.

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